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Aventura – Relato do fotógrafo Robson Czaban,
sobre sua subida ao Pico da Neblina.

Continuação da página anterior (esta é a terceira  e última, juro!!)


No dia seguinte, o começo da caminhada de volta.

O Deco havia me dito, no primeiro dia, que a volta é mais rapida mas acaba com o preparo físico da pessoa. E eu havia me esquecido disso, o que foi quase fatal.

Devido a chuva do dia anterior, os escorregões e tombos eram muito frequentes e, em duas vezes, eu deixei o equipamento cair e por pouco não perco tudo. Achei mais seguro deixar tudo bem preso na mochila e sacrificar as fotos que poderiam ser tiradas.

Ao meio dia, já tínhamos chegado no bebedouro novo e eu fiquei bastante animado com a possibilidade de ganhar um dia na volta e decidi continuar andando até o bebedouro velho. Chegamos lá as 4 da tarde. Meu corpo estava dolorido e as pernas também. não deveria an dar mais naquele dia mas o Deco falou que, se nos conseguíssemos che gar até o acampamento do Tucaninho ainda naquela tarde, poderiamos ir depois no dia seguinte até a barra do tucano pela manhã, a tarde des cer o Cauaburi e o Iagrande até a barra do Iamirim e, quem sabe, até dormir em São Gabriel da Cachoeira naquela mesma noite.

Achei a proposta tentadora e resolvi ir em frente. Foi ai que eu me lasquei. Esqueci que o peso que eu estava carregando era pequeno e que a partir dali, carregaria o material fotográfico que havia deixado na subida, mais a lanterna e os mantimentos. já estava caminhando a 11 horas, as pernas e joelhos começaram a doer outra vez e um temporal desabou sobre a gente, deixando tudo mais pesado, o chao mais escorregadio, a bota enxarcada, e a mata mais escura.

Faltava ainda uma hora e meia pra chegar ao acampamento do Tucaninho e eu não conseguia mais andar direito. Foi ai que apareceu o Carioca.

Ele era um dos 23 garimpeiros que viviam na base do pico e que, atraves do Cobal, ficou sabendo que a gente estava indo pra São Gabriel e queria uma carona no barco pra fazer compras.

Bem mais acostumado aquele tipo de caminhada, ele nos alcançou e se ofereceu pra levar as minhas coisas. Do jeito que eu estava não poderia recusar uma gentileza daquelas e passei tudo pra ele, ficando apenas com o próprio peso do corpo pra carregar, o que já era muito peso, com as pernas naquele estado.

Novamente, estava andando feito o Robocop, igualzinho como no primeiro dia de caminhada, com a agravante de estar com os pés cheios de bolhas d'água , devido as minhas botas estarem se desmanchando.

Já com a noite começando, a mata bem escura, chegamos no acampamento do Tucaninho. Eu estava acabado. Era só um resto do que eu já fui. Com a chuva forte, o igarape subiu mais de um metro, ficando lamacento e rápido, atrapalhando o banho e deixando a água imprópria para consumo. Imprópria ? Isso era antes de eu ter bebido aquela água cheia de insetos, ainda na subida. Quem bebe uma merda daquelas não vai ficar com frescura só porque a água esta barrenta. Com a sede que eu estava, a água barrenta do rio tinha um sabor de água mineral de São Lourenco ou Caxambu, com a vantagem de vir acompanhada de uma quantidade bem maior de "sais minerais".

Com a lanterna, iluminei os meus pés pra ver se eles ainda estavam lá. Estavam, mas eu não os reconheci. Estavam inchados e cheio de bolhas, como se eu os tivessem colocados no micro ondas. A bota estava imprestavel e, mesmo que estivesse boa, não daria pra colocar os pés novamente dentro delas.

Enquanto eu admirava meus pés, o Deco fazia a janta. O que teriamos hoje para o jantar ? OH ! que surpresa: arroz com jabá. só que o Tang tinha acabado e ia ser acompanhado com xibe'. Perguntei ao Carioca do que se tratava. Era simplesmente água com farinha. Preferi encarar novamente a água barrenta do rio.

lá no fundo do jamanxim encontramos um pacote de sopão.

Um nectar dos deuses.

Arroz com jabá, sopão e xibe'. Tem coisa melhor nesse mundo ? Melhor que isso, só se ainda tivesse um Miojo. Com Tang.

Enquanto eu comia, o Carioca falava. E como falava.

Era até bom ouvir alguém conversador, já que o Deco não era muito chegado em abrir a boca. Fiquei interessado em saber como vivia um garimpeiro naquele fim de mundo.

Pra começar, descobri que ele era Carioca não porque tinha nascido no Rio de Janeiro, mas porque tinha sido preso transando com uma prostituta Carioca nas ruas de São Gabriel. Bom começo. Tinha país vivos mas não os via a 15 anos. Tinha uma namorada em São Gabriel com quem tinha 2 filhos. Como ele só a via de 5 em 5 meses e, assim mesmo, somente durante uns 2 ou 3 dias, fiquei imaginando se os filhos eram dele mesmo. Alem desses 2 filhos, ainda tem mais 2 que não ve a 4 anos e não sabe onde se encontram, nem parece se importar com isso.

E analfabeto, e só sabe assinar o nome. Mas não é burro. Não tem documentos, nem dinheiro. Ele usa o ouro que retira da montanha pra comprar tudo o que precisa. Para isso, ele tem que saber quanto custa as coisas que quer comprar, em gramas de ouro. Tem que carregar um saquinho com o ouro dentro, mais uma balanca pequena, com escala em gramas, pra pesar o ouro. não gosta de receber ordens, não se adapta a horarios, não tem especialização em nada e, por ser analfabeto, não conseguiria arranjar emprego nem como ajudante de auxiliar de assistente de pedreiro. Disse que já foi muito humilhado e frequentemente é preso simplesmente porque tem cara de bandido ( isso é verdade ) e não tem trabalho ou documento.

Não acho que vida de garimpeiro seja vida que preste, mas escutando as estorias do Carioca, fico pensando em quais alternativas melhores que essa ele teria. Extraindo ouro, ele consegue tirar de 600 a 1000 reais por mes, e sempre vive com a esperanca de que um dia vai encontrar um veio grande de ouro e, então, conseguir muito dinheiro.

Ele diz que se fosse trabalhar na cidade, não teria a liberdade que tem, o espaco que tem, e trabalharia sem esperancas de melhorar de vida. É dificil pra nos, da cidade, com estudo, entender os valores que tem uma pessoa como ele, nas condições em que vive.

Por coincidencia, ele estava fazendo 37 anos naquele dia.

Dei um simples "parabens" pra ele. não houve bolo nem velinhas. até havia velas mas no lugar do bolo só tinha jabá. não ia dar pra fazer festa.

Perguntei como ele mantinha contato com a civilização e ele me disse que era pelo radio. Em São Gabriel tem uma radio que faz esse trabalho social, de utilidade publica. Se alguém precisa enviar uma mensagem para quem estiver lá em cima, é só ir até a radio, dizer qual é o recado que o locutor avisa na mesma hora.

Seria algo mais ou menos assim:

"Alo garimpo da Neblina. Alo garimpo da Neblina. O Carioca avisa que já fez o rancho e sobe amanha na voadeira. É para vocês esperarem ele no Maturaca depois de amanha.!"

E por ai vai.

Ha muito tempo atras, no interior do Parana, na região de Nova Restinga, eu já tinha visto esse tipo de coisa. Fulano de tal avisa beltrano que chega de viagem. Sicrano avisa que vai comprar a vaca de fulano, etc.

Dá pra se concluir que um dos materiais mais importantes no garimpo é a pilha. Sem ela não tem radio. Sem radio não tem noticias e o povo fica mais isolado do que já esta.

Os garimpeiros gastam uma quantia razoavel com mantimentos de primeira necessidade, isso porque levar a mercadoria até eles custa muito dinheiro. São Gabriel já tem um custo de vida alto em função do frete de barco ou de avião, de Manaus até lá. não existe estrada. Pra se levar de São Gabriel até o garimpo da Neblina gastase 200 litros de combustivel, mais o custo dos carregadores, mais o lucro do barqueiro. Um carregador costuma cobrar de 30 a 50 reais por dia de caminha da, e eles levam pelo menos um dia e meio pra subir e um dia pra descer. Nem adianta levar muita coisa pra economizar viagem porque só se chega lá de voadeira e ela é pequena pra se levar muita coisa. E cada carregador só carrega no máximo 40 quilos de mantimentos.

Alguém deve estar se perguntando: se aquilo é uma reserva ecologica, como pode o governo permitir a permanencia daqueles garimpeiros lá ? Ninguém me respondeu essa pergunta, mas eu acredito ter achado a resposta.

Tanto o IBAMA, quanto a Funai, quanto o Exercito, não tem dinheiro nem recursos humanos suficientes pra fiscalizar uma area daquele tamanho. Aqueles 23 garimpeiros, uma vez que moram lá, funcionam como fiscais indiretos 24 horas por dia. Eles não querem mais ninguém por lá, pois o ouro que encontram já é pouco para os que já existem. Alem disso, fazendo esse trabalho de fiscalização para o exercito e o IBAMA eles conquistam o direito de serem tolerados por lá. A técnica usada para extração de ouro é o sistema de bateia, para ouro em grão. Eles não usam o mercurio, que serve para se extrair o ouro em po. Quer dizer, o estrago que eles fazem não é tão grande assim e a natureza consegue se recuperar rápido.

Alem do trabalho de fiscalização, todos esses orgãos tiram algum proveito da permanencia deles por lá, afinal os garimpeiros dão manutenção nas trilhas e nos acampamentos ao longo do caminho, servem como guias quando aparecem turistas e o próprio exercito já precisou deles para operacões de resgate na selva. até gente do exercito já se perdeu naquelas florestas.

Dormi ouvindo as estorias do Carioca.

Acordei algumas horas depois com febre. não tinha remédio na mochila e resolvi tomar mais um prato de sopão, que ainda estava na fogueira. Acho que deu certo pois eu consegui dormir de novo.

No outro dia pela manhã a perna amanheceu dura. Tive que me exercitar um pouco pra pensar em caminhar novamente. não tinha condições de calcar a bota e a bota não tinha condições de ser calcada por mais ninguém. O Carioca me emprestou a sandalia (havaina, que não deforma, não solta a tira e não tem cheiro ) que ele usava e foi descalco. A sola do pé dele permitia esse tipo de coisa.

Conferi o material de fotografia. Tudo molhado ! Puta que pariu, deduzi com sabedoria.

Precisava colocar o equipamento no sol com a máxima urgência, antes que perdesse tudo. O disparador e o diafragma não estavam mais funcionando. Com isso, perdi uma bela foto de uma cobra coral demais de um metro que atravessou debaixo dos meus pes. Quando percebi, ela já estava passando por debaixo e a única coisa que fiz foi ficar bem quietinho pra não assustar a cobra. Bastava eu ficar assustado.

É sempre inquietante encontrar uma cobra, principalmente se ela for venenosa, mas a verdade é que jamais sofri um ataque de cobra, seja de que espécie for. E olha que já cruzei com dezenas ao longo de mais de 30 anos indo pro meio do mato, seja pra pescar, acampar ou tirar fotografias.

Três horas de caminhada depois, chegamos na barra do Tucano. Agora o retorno seria de barco. Deus é grande !!! Ia passar uma tarde inteira sem precisar andar.

Parei pra descansar e pensar no que havia feito. Foram, até o momento, mais de 100 Km de caminhada no meio da selva em 8 dias para ir e voltar, 3000 metros de desnivel entre a parte mais alta e a mais baixa, dores nos músculos e bolhas nos pés e, o pior de tudo, esse tempo todo se alimentando de arroz com jabá.

Mas, com certeza, a lembranca de ter visitado um lugar tão bonito, tão isolado do mundo, com flora e fauna tão particular, e as fotos inéditas que eu consegui, fariam com que eu não me arrependesse de ter feito o que fiz.

Saimos com o barco pelo Tucano até o Cauaburi, que estava um pouco mais baixo do que quando chegamos uma semana antes. Eram umas onze horas da manhã e o sol batia forte no meio do rio. Um calor gostoso fazia com que as dores nas pernas e nos pés diminuissem um pouco. Tirei a roupa e coloquei pra secar em cima do barco. Fiz o mesmo com o material fotográfico. Dava do de ver. Todas as lentes embaçadas por dentro devido a umidade.

Aos poucos, o material fotográfico foi secando e as engrenagens que estavam emperradas voltaram a funcionar. Infelizmente, não pude fotografar os pássaros que encontrávamos no volta.

O Carioca começou a passar mal.

A medida em que eu me recuperava, ele se lascava.

Acostumado a morar numa altitude entre 2000 e 3000 metros, onde a temperatura esta sempre abaixo dos 20 graus, umidade do ar sempre acima dos 80 por cento e o ar mais rarefeito, o Carioca simplesmente teve um treco ao se deparar com temperaturas acima dos 35, sol, umidade mais baixa e uma pressão do ar bem maior.

Quando dava sede, eu enfiava a caneca no rio e bebia aquela água barrenta e escura, como quem bebe uma coca-cola, sem nem mesmo conferir se havia algum objeto estranho na água . Conferir pra que ? Depois de beber as águas que eu já havia bebido, não iria frescar com um barrinho daquele.

O problema maior, no final da tarde, foi a fome. Tudo que haviamos levado já tinha se acabado, também porque o Carioca comia bem e não tínhamos levado comida pra tres, só pra dois.

A solução veio logo em seguida, subindo o rio.

Uma piroga ( eu disse piroga ) com dois yanomamis que voltavam pra aldeia, cheia de peixe moqueado. O Carioca disse que talvez eles nos vendessem algum. Paramos a canoa e começou uma longa negociação com os índios.

- Vocês vendem esse moqueado ?

- Sim.

- Quanto ?

- Dez conto um punhado.

- Fechado.

-Qual é, mermão ? Com fome, a gente tem que ser rápido.

Os índios separaram 10 aracus dos grandes, pegaram a grana e foram embora. O Deco e o Carioca comeram o moqueado com xibe. Eu bebi a água do rio mesmo.

Pra quem não conhece a culinaria yanomami, o aracu moqueado é uma iguaria finissima, que também poderia ser chamada de peixe na fumaça. O aracu é um tipo de piau listrado. Eles limpam o peixe, deixando as escamas e colocam o bicho numa grelha alta, bem acima do fogo, durante horas, pra pegar o calor e a fumaca que sai da fogueira. Preparado dessa forma, o peixe dura alguns dias fora da geladeira.

Isso é muito util, já que os índios não tem geladeira e precisam armazenar quantidades de comida para os dias em que não se pode pescar ou cacar. O paladar é como... peixe enfumacado.

Eu taquei um ajinomoto na carne e o paladar melhorou. Os índios comem puro, sem sal ou tempero. Mas nada como a fome pra deixar o moqueado com gosto de moqueca.

Outras formas de conservar o peixe é salgando-o ou fazendo o piracui, uma espécie de farinha de peixe, onde se mistura a carne desfiada do peixe com farinha de mandioca e sal, durante várias horas num tacho enorme, até que a água da carne se evapore. O piracui dura várias semanas, sem estragar. E é gostoso.

lá pelas 5 da tarde chegamos no posto da Funai e reencontramos o Modesto, aquela figura já comentada anteriormente.

Tínhamos imaginado de dormir no posto da Funai e só seguir para a ponte do IaMirim na manhã do dia seguinte. Mas estava cheio de índio no posto da Funai e não tinha lugar pra gente. O Modesto sugeriu que fossemos, ainda naquela tarde, para o IaMirim pois o caminhão do Coquito estava pra chegar e ele poderia nos dar carona de volta.

Gostei da idéia. Se tudo desse certo, dormiria aquela noite em São Gabriel da Cachoeira. Cama, chuveiro, televisao, fazer a barba, e fazer coco no vaso ( eu já estava desacostumando disso ).

O Deco achou que dava e fomos em frente.

Chegamos na ponte do IaMirim as 18:30. Ainda tinha luz e não tivemos problemas com pedras, apesar do rio bem mais baixo do que quando saimos. Ali o Deco mostrou que conhece bem o rio. Desviava das pedras bem antes de ve-las e sabia "ler" muito bem a superficie da água a fim de identificar tocos, pedras e bancos de areia.

Logo perto da ponte vimos o carregamento de cipó que o Coquito viria pegar. Bom sinal. Ele ainda não havia chegado. Como já estava escurecendo, resolvemos tomar um banho pra descancar enquanto o Coquito não vinha. Tiramos as roupas e entramos no rio. Logo que entrei, aparecerem duas índias. Elas também entraram no rio e tomaram banho. Fiquei meio constrangido mas logo vi que aquilo era normal.

Duas horas depois, noite fechada, nada do Coquito chegar. Já estávamos ficando preocupados quando o Coquito apareceu. A pe. Puta que pariu ! Cadê o caminhão ?

O Coquito esclareceu que o caminhão quebrou o eixo traseiro no Km 55 da estrada pra Cucui, num buraco novo.

Iamos ter que dormir na estrada. O Deco adiantou que 300 m mais a frente tinha uma comunidade de índios, onde poderiamos dormir. Fomos até lá, conversamos com o índio mais barrigudo (devia ser o chefe) e armamos as redes sob um galpão, onde mais 7 índios já estavam deitados, cada um nas suas respectivas redes.

Bateu a fome outra vez e ainda tinha sobrado 4 aracus moqueados. Cada um comeu o seu e eu ainda deixei metade do meu para o caso de não ter café no dia seguinte.

Depois das oito, mais índios apareceram e todos começaram a bater um papo bem animado... em lingua yanomami. Legal, todo mundo conversando e só o babaca aqui não entendia uma palavra do que eles diziam. Todos riam e eu ria também. As vezes eles olhavam pra mim e riam. Eu ficava imaginando o que eles poderiam estar dizendo: " homem branco com cara de boiola ". E todos riam. Como eu não podia ter certeza e não queria parecer mal educado, eu ria também.

Tinha umas 15 pessoas mais ou menos dormindo no galpao e, dessas, um casal que dormiu e transou na rede, bem na nossa cara como se não houvesse mais ninguém ali. O que é a cultura de um povo. Se fosse na cidade, segundo as nossas leis, seria um forte atentado ao pudor. lá, nao. Pra eles é normal. Fora eu, ninguém mais se importou com o fato.

No dia seguinte, aquele café da manhã com moqueado. Levantei cedo, bati algumas fotos da aldeia, cruzei com mais uma cobra, fui até o rio tomar outro banho e esperar a Toyota do Ibama que viria nos buscar. Com as horas passando e vendo que nada da Toyota chegar, percebemos que ela não viria, provavelmente achando que voltariamos com o Coquito. Como iriamos fazer ? até as 11 da manhã não havia passado nenhum carro na estrada. Nem carona ia dar pra pedir.

Mas estávamos com sorte. Fomos informados que o ônibus que faz a linha São Gabriel / Cucui estava retornando para São Gabriel naquele dia. Beleza. A que horas ele chega ? Entre 11 horas e 15 horas. Quando chega, porque o ônibus quebra muito.

As duas da tarde comecei a ouvir um barulho horroroso, como o ranger de um carro de boi. Era o ônibus.

Galera... que ônibus !!202.gif (36050 bytes)

Pensei que minha aventura havia terminado, mas quando vi o ônibus, percebi que ainda tinha coisa pela frente.

Era uma lata velha do tempo da guerra, coberto de poeira, imundo por dentro e por fora, cheio de gambiarras nos parachoques, radiador, farol, limpadores de parabrisa, retrovisores. O motor era na frente e o isolamento termo acustico já tinha se deteriorado ainda na epoca da ditadura militar. Todo o ruido, mais a fumaca do motor e a poeira da estrada, entravam pela vedação do motor pra dentro do ônibus impedindo toda e qualquer conversa civilizada.

Tudo tinha que ser falado aos berros.

O único que conversava era o Caquito, amigo do motorista do ônibus. E logo que entrou, sentou-se ao lado do motorista, sobre a tampa do motor. Dentro do ônibus, somente índios. O único branco, fora o motorista, era eu.

O corredor do ônibus estava tomado de frutas e raizes dos próprios passageiros, para serem vendidos na feira de São Gabriel.

Para se chegar em algum banco do ônibus, tinha que se pisar nos assentos porque o corredor não tinha mais espaco, de tanta fruta que tinha. Perguntei se não havia problemas em levar aquilo no corredor e me disseram que estavam levando no corredor porque o porta-malas estava cheio. Pode levar qualquer coisa, desde que caiba. Um porco, por exemplo, pode ir. Uma vaca, nao.

Assim como a maioria dos passageiros, o motorista estava de sandalias Havaianas ( que não deformam, não soltam as tiras e não tem cheiro ) e dirigia com uma calma insuportavel.

Num certo trecho da estrada, ele parou o ônibus e foi conversar com "o compadre" que morava logo ali. Demorou uns 10 minutos e ninguém no ônibus pareceu se importar com a demora.

Percebi que pouquissimas coisas funcionavam no ônibus. Molas e amortecedores, com certeza, estavam entre elas. O volante não tinha folga, tinha ferias.

De vez em quando, o motorista fazia sinal pro Caquito, que abria uma tampa em cima do motor e jogava uma lata de óleo dentro. Logo vi que havia vazamento no motor e o nivel do óleo era completado ali dentro mesmo.

Mais um pouco e ele jogou água em outro buraco. O radiador também estava bichado. Pelo menos era prático. não se precisava parar o carro pra fazer essas manutencoes. Quando um bufalo atravessou a pista na nossa frente, percebi que os freios também eram imaginarios.

Lembrava aqueles filmes americanos onde eles "retratam" um país qualquer da America Latina e, para isso, mostram ônibus seculares cheios de pobres e índios, carregando galinhas, porcos e cabras.

Depois de duas horas de viagem, o motorista parou ao lado de um igarape de água s bem limpas e disse:

-Cinco minutos!

Fiquei imaginando o que aconteceira: cinco minutos pra fazer o que ?

De repente, todo mundo no ônibus começou a descer. Foi o maior tumulto, visto que o corredor do ônibus estava completamente tomado de hortifrutigranjeiros. Uma velha índia, gorda, com as pernas arreganhadas entre um banco e outro, tentava sair do ônibus, ajudada por três pessoas. Se escorregasse, iria cair sentada, literalmente, na mandioca.

Quase todo mundo no ônibus desceu pra fazer xixi. As mulheres ainda tinham a sensibilidade de ir até o matinho mais próximo, se agachar por lá e descarregar o tanque. Os homens, mais práticos, faziam em qualquer lugar mesmo, na base do "quem não quiser ver, entao que não olhe". Depois do xixi, fomos matar sede nas água s do igarape. Alguns aproveitavam pra tomar banho, também, de roupa e tudo. Uma jovem índia, aparentando uns 20 anos, vestindo short jeans e camiseta de algodao com a cara de um candidato a vereador estampada, mergulhava na parte mais funda do igarape, como se fosse passar a tarde toda ali.

Voltou toda transparente e pingando água pelos cabelos.

Deu vontade de tirar uma foto dela.

Uma outra índia aproveitou pra dar um banho no seu índiozinho, que estava todo cagado.

A poeira e terra que havia no ônibus deu lugar a uma bela lama, já que boa parte dos passageiros voltou molhada.

A velha arreganhada teve mais dificuldade pra voltar lá pro fundo do ônibus porque ela ia escorregando na lama.

Ate o final da viagem, o motorista e o Caquito colocaram óleo pelo buraco do motor mais uma vez, e água pelo buraco do radiador mais duas vezes.

A cobranca da passagem era feita no momento em que o passageiro descia. Muitos deles não pagavam e diziam que "depois eu pago pro senhor", ou "assim que eu vender isso aqui eu pago" ou "junta com aquela...". Outros davam o que tinham nos bolsos e, na maioria dos casos, não dava nem metade da passagem, que era apenas 15,00 reais.

Percebi a importancia daquela linha de ônibus. Era muito mais um fator de integração social do que um comercio com fins lucrativos. Talvez, o maior lucro que o motorista estava tendo era o lucro politico, caso ele quizesse, mais tarde, concorrer a algum cargo como vereador ou até prefeito.

O motorista perguntou onde eu iria ficar. Respondi que ficaria no hotel. Ele disse que me levava lá. Parou na porta do hotel e chamou a Conceição. Mandou que ela me desse o melhor quarto e não cobrou a viagem. Mais essa ! O motorista era o dono do ônibus, da companhia de transportes e do hotel.

Despedi do Carioca. Ele iria ficar na casa de uns amigos. Prometi que mandaria algumas copias das fotos que tirei.

Tomei aquele banho, botei uma roupa descente e fui jantar. Antes de sair, as meninas do hotel vieram me perguntar como foi a viagem, se tudo correu bem, que elas estavam preocupadas, etc e tal.

Prometi que contaria tudo em detalhes depois do jantar porque eu precisava urgentemente fazer uma refeição civilizada.

Voltei lá na Arlete e perguntei o que tinha pra comer. Se ela me dissesse que tinha arroz com jabá eu acho que colocaria fogo no estabelecimento. Por sorte, tinha bife de filé, com muita cebola, batata frita, salada e arroz. Comi feito um animal e bebi muita, muita, muita coca-cola. Arrotava com uma satisfação que só aqueles que passaram 10 dias a base de Tang conseguiriam entender.

De volta ao Hotel, o Caquito estava me esperando pra dizer que tinha arranjado outro caminhão e que voltaria ainda naquela noite lá pra estrada de Cucui, pra tentar consertar o caminhão dele. É muito apetite. Desejei-lhe boa sorte e fui dormir. Havia me habituado a dormir cedo e já estava com sono, apesar de ser apenas 8 da noite.

Esqueci de contar que o Deco não voltou no ônibus por causa do motor do barco. não cabia no ônibus, que já estava lotado de mandioca e frutas, e assim ele ficou na aldeia dos índios, água rodando a volta do Caquito. Que aluguel !

No dia seguinte pedi um café da manhã no quarto, com frutas, geleia, manteiga, queijo, presunto e ovos. Merecia um café mais substancioso que aquele tomado nos 10 dias anteriores. Passei numa farmácia pra comprar remédio pra ameba. não fiz exame pra saber se estava com elas mas nem precisava fazer, depois de ter bebido as "águas" que bebi. Aproveitei e subi na balança: estava 4 quilos e meio mais magro. A calca estava frouxa na cintura. Que beleza. Acho que e a primeira vez que emagreço em 15 anos. Atenção gordinhos: pra quem quiser perder barriga, eu recomendo a trilha do Pico da Neblina. Você perde a barriga, as gordurinhas, a flacidez, a paciencia e o medo de cobra. Não tem nada igual !

Naquele dia eu ainda fui ao banco retirar dinheiro pra pagar o Deco, marcar passagem de volta para o dia seguinte, e ainda fazer um passeio de barco pelo rio Negro, onde pude ver o potencial turistico inexplorado que existe na região de São Gabriel. São centenas de ilhas e praias desertas, cada uma mais linda que a outra que, se fossem em outro pais, com certeza estariam faturando alto com o turismo. Em todas as praias que vi, não encontrei um ser humano sequer. As vezes encontrava uma cabana perto da praia, mas mesmo nestes casos não via ninguém.

O único hotel que explorava este tipo de turismo era o que ficava na Ilha dos Reis. Um hotel lindo, rustico, todo em madeira, com quartos aconchegantes, providos de varandas enormes com redes, que davam de frente pras duas praias particulares do hotel. Todo ornamentado de flores e arvores e uma cozinha de primeira, onde os pratos principais eram a base de peixe. Os donos eram muito simpáticos e me deram um folder do hotel, escrito todo em ingles ( King's Island Hotel ). E, o mais incrivel, não tinha nenhum hospede no hotel. Tudo isso por apenas 80 reais o casal, incluidas 3 refeições.

Consultei 3 agencias de turismo em Manaus e nenhuma delas conhecia o tal hotel, e 2 delas nem sequer sabiam o que se tinha pra fazer em São Gabriel da Cachoeira. engraçado é que agencias de turismo na Europa sabem o que existe em São Gabriel da Cachoeira, tanto que a maioria dos turistas vem de lá.

Na manhã do último dia, o sr. Elzio me levou até o aeroporto. Agradeci todo o apoio e também prometi cópias de fotos do pico. Achei todos muito simpáticos.

Estava voltando com o espirito tranquilo e descançado.

Ainda tinha alguns dias de férias pra recuperar do joelho e das bolhas d'água nos pés.

Do avião eu via a Bela Adormecida sumindo a direita.

Talvez um dia eu volte a São Gabriel e ao Pico da Neblina.

Mas de helicóptero.

 

Fim da aventura.......

placseta.wmf (1878 bytes)volta pra primeira página.......

Robson Czaban é fotógrafo, artista plástico, analista de sistemas, aventureiro, contador de causos, etc.

1998 -
Página elaborada por:
design by Rose Antonelli
Ilustrações e shockwave:

Rose Antonelli - Brasília - DF

Fotos:

Veja o álbum de fotografias

Comunique-se:

rob_czaban@hotmail.com

Alpinismo e aventura:

Outro link interessante: www.sagarmatha.com.br - página de Waldemar Niclevicz




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