.O Mito do Inconsciente
Iniciemos transcrevendo afirmações
de Freud acerca do inconsciente. A transcrição
se torna necessária, pois que não existe na obra
de Freud uma definição de inconsciente, apesar
de ele o haver introduzido como núcleo conceitual da psicanálise
[J.Laplanche, e J.B. Pontalis - Vocabulaire de la Psychanalyse
- Paris - Presses Universitaires de France - 1967 - p.197/9];
nesta falta de conceituação do inconsciente já
se torna nítida a ausência de fundamentação
metodológica e as implicacões epistemologicamente
metafísicas da teoria freudiana:
"A psicanálise nos obriga pois, a afirmar que os
processos psíquicos são inconscientes e a comparar
sua percepção pela consciência com a percepção
do mundo exterior através dos órgãos dos
sentidos. Esta comparação nos ajudará ainda
a ampliar nossos conhecimentos. A hipótese psicanalítica
da atividade psíquica inconsciente constitui de certo
modo uma continuacão do animismo, que nos mostrava sempre
fiéis imagens de nossa consciência e por outro lado
a da retificação feita por Kant da teoria da percepção
externa. Do mesmo modo que Kant nos levou a considerar a condicionabilidade
subjetiva de nossa percepção e, a não considerá-la
idêntica ao percebido incognoscível, convida-nos
a psicanálise a não confundir a percepção
da consciência com o processo psíquico inconsciente
objeto da mesma. Tão pouco o psíquico precisa ser,
em realidade, tal como o percebemos. Mas, temos que esperar que
a retificação da percepção interna
não ofereça tantas dificuldades como a da externa
e que o objeto interior seja menos incognoscível que o
mundo exterior. - S.Freud, Metapsicologia, in Obras Completas,
Volumen I. Madrid, Biblioteca Nueva, 1948, p.1045"
Fica claro no acima transcrito a visão dualista, metafísica,
seja na afirmação de realidade externa e interna,
seja na admissão da incognoscibilidade do mundo. Mais
inteligível se torna esta posição freudiana,
se lembrarmos as explicações Kantianas acerca do
conhecimento. Kant [The Critique of Pure Reason - Chicago - Encyclopedia
Britannica - 1952 - Great Books] considerava o conhecimento do
mundo, das coisas, como impossível de ser realizado enquanto
apreensão do dado fenomênico, dizendo que a coisa
em si não pode ser conhecida, só o podendo ser
através de categorias que a sistematizem. Daí advém
inclusive a negação do tempo e espaço como
realidade existentes, cognoscíveis e a colocação
delas como categorias para o conhecimento. Esta visão
kantiana justifica a postulação do inconsciente.
Para Freud, o homem em si, a atividade consciente, não
pode ser conhecida; só o é enquanto representação
de uma realidade inconsciente (mecanismo de projeção),
de onde decorre ser o inconsciente a categoria lógica
que permite o deslinde da complexidade humana. Também
no conceito de atemporalidade do sistema inconsciente encontramos
influências kantianas. Dentro de uma visão unitária,
objetiva, não há como subsistire m, admitir existências
atemporais. Tal admissão significaria a negação
de toda a ordem física do universo. Além e por
causa destes dualismos de influência metafísica,
a idéia, o postulado do inconsciente, não pode
ser experimentado comprovado; a psicanálise justifica-se
dizendo que o inconsciente é um constructum lógico,
explicando assim a impossibilidade de comprovação
experimental, mas por outro lado criando novo impasse, ou seja,
sendo um constructum, toda a idéia de sistema inconsciente,
dentro do ponto de vista tópico, fica negada, isto é,
já não se poderá falar em Id, Ego e Super-Ego,
consciente e pré-consciente como instâncias psíquicas.
É um beco sem saída. Um mito, ou como diz van den
Berg: "O consciente do terapeuta é o inconsciente
do paciente" [J.H.van den Berg - O Paciente Psiquiátrico
- São Paulo - Mestre Jou - 1966 - p.120], e ainda do mesmo
autor no mesmo livro: "o fenomenologista nunca tem necessidade
de hipóteses. As hipóteses surgem quando a descrição
da realidade termina prematuramente. A fenomenologia é
a descrição da realidade".
Neste ponto, dentro de uma visão gestaltista fenomenológica,
o inconsciente passa a ser visto como um postulado, um mito,
e sobre este aspecto dele falaremos.
O que é o mito? O mito é uma idéia e, portanto,
o problema que se coloca é saber de onde surge essa idéia.
Entramos no nível epistemológico da questão.
Sendo assim, particularizaremos nossa conceituação
do mito, dizendo que é uma idéia resultante da
procura de explicação de um determinado fenômeno,
ou melhor, o mito é a explicação de um determinado
fenômeno; nesses termos, o mito sinonimiza-se com um postulado,
uma hipótese, um dogma, uma fantasia e até mesmo
com o pensamento lógico. Encontrada esta última
sinonímia, as coisas ficam absurdas, pois se mito é
igual a pensamento lógico, como pode ser mito? Ou ainda:
o que caracterizaria um e outro? Para responder a isto, necessário
se torna colocar o problema do que é pensamento lógico:
é aquele resultante de uma apreensão das relações
que configuram um fenômeno, sendo portanto explicação
do fenômeno; o mito é também explicação
do fenômeno só que esta explicação
é resultante de apreensões unilaterais ou distorcidas.
Então, tudo consiste em saber o porquê das unilateralizações
ou distorções; explicando isto, entende-se a gênese,
a essência da estrutura mítica independente das
áreas que a suportem.
Imaginemos um percebedor e uma coisa a ser percebida em um determinado
espaço. Pensemos nesta situação admitindo
anteparos entre os dois pontos localizados; a situação
dos anteparos importa pouco ou muito, a depender das perspectivas
distorcidas enquanto quantidades; qualitativamente sempre haverá
distorção ou impossibilidade de configurações.
Observando isto (a plástica contextual das pecepções
míticas), poderemos entender a sinonímia antes
colocada e conceituar mito como sendo o a priori. Este a priori
desenvolve-se em estruturas religiosas (o dogma), em estrutura
social (as diversas instituições alienantes), etc.
Na esfera psicológica, o problema torna-se um conglomerado,
nuclealizando-se no indivíduo como um emaranhado desvitalizador
de sua essência constitutiva, humana. Em termos individuais,
o mito é a imagem, que fazemos de nós próp
rios, independente das relações que nos configurem;
como tal, estática, absoluta, apriorística. Exemplifiquemos:
a) a procura de ajuste sem nem saber a que, sem questionamentos
sobre a capacidade viável do suporte, encaixe, das estruturas
existentes e predeterminadas a este fim;
b) a necessidade de comunicação e relacionamento,
sem se colocar os níveis em que isto se possa dar: se
posicional ou relacional, superficial ou nuclealizado, ponto
de encontro ou linha de fuga;
c) o querer responsabilizar-se através das diversas formas
de compromisso, "coisificação" que em
essência antagoniza-se com a responsabilidade cuja constituição
dinâmica essencial é a lucidez, a autenticidade,
a liberdade, portanto;
d) a satisfação, ou realização pessoal
ou felicidade também se constituem em mitos, pois são
procurados como solução, quer dizer, em termos
de futuro e não como configurações a serem
extraídas da problemática presente.
Enfim, o mito pode ser equacionado como sendo a imagem, o papel
que procuramos representar diante de nós, do outro e do
mundo; toda imagem, sendo representação da coisa,
é por definição aderente e responsável
pela quebra das relações homem-mundo, desarmonia,
o que significa dizer que todo o rompimento de estruturas, de
essências, de planos configurativos, ocasiona distorções.
Mitos, portanto, que só podem ser entendidos a partir
da decodificação, e aí entramos no maior
mito atual - na área da psicologia - a complexidade do
ser humano e então... como um mito só pode ser
resolvido por um mito e meio... surge a psicanálise com
seus conceitos de arquétipos, instintos, natureza humana
- estático que, por irremovível, pensa poder ser
entendido, ou ainda, em outros planos, visando o mesmo ponto:
o homem, as religiões, Deus, etc.
De todo o exposto, concluimos que o mito é estático,
logo mágico, em um universo que possui apenas de absoluto
o relativo.
No movimento, o mito se desgasta, e isto a história dos
processos antropológicos, sociais, científicos
e psicológicos nos tem revelado, o que significa: o próprio
mito só pode ser visualizado através do não
mito, quer dizer, o mito, enquanto ele mesmo, não é
mito. Para finalizar responderemos porque Freud elaborou este
mito - o inconsciente - tanto quanto a causa de sua manutenção.
A distorção perceptiva, resultante de perceber
o todo homem como soma de partes (instintos, inconsciente, Id,
Ego, Super-Ego), originou uma visão mágica [58
] do processo humano, e exatamente aí, nesse elementarismo
mecanicista, reside a impossibilidade psicanalista de abranger
a dinâmica humana enquanto ser-no-mundo, e o erro não
é somente da psicanálise, mas de toda a metafísica
subjetivista, ao distorcer a relação figura-fundo,
resultante da quebra da Gestalt, da quebra da relação
unitária. Esta divisão da unidade, por não
apreensão da bipolaridade da unidade relacional, provocou
a visão dualista e nela a hierarquização
metafísica, idealista, de que a idéia é
primária e cria a matéria [59]. [pags.71 a 78]
.
NOTAS:
. 58 - Duas atitudes básicas
caracterizam a explicação cognitiva científico-metodológica,
tanto quanto a apreensão perceptiva de qualquer realidade.
Designemos estas atitudes como mágica e objetiva distorcida
ou não. A atitude mágica seria resultante da unilateral
vivência da situação configurada, quer isto
se dê por auto-referenciamento distanciamento ou superposição
da situação enfocada através de sua pluralidade
dimensionada espacial ou temporalmente. O auto-referenciamento
é a decodificação da realidade em termos
de conhecimentos já existentes; toda vez que isto se dá,
existem na relação cognitiva preexistências
constitutivas, daí o dado real (realidade e derivados,
são empregados no sentido de descrição contextual,
enquanto meio geográfico; vide Koffka, op.cit.) ser substituído
por um significado extrínseco à sua estrutura significativa.
O distanciamento resulta de uma não pregnante configuração
da realidade, o que é uma decorrência de auto-referenciamentos
homogeneizadores. Através de vários conhecimentos
preexistentes, estratificam-se esquemas a partir dos quais as
realidades conhecidas são afastadas para postulados genéricos
e explicativos. Havendo preexistências cognitivas (o auto-referenciamento),
responsáveis por distanciamentos do fenômeno que
se dá para conhecer ou que está sendo conhecido,
a vivência temporal começa a ser apofânica
(empregado no sentido de vivência derreísticas;
K. Conrad - La Esquizofrenia Incipiente. Intento de un analisis
de la Forma del Delirio - Madrid - Alhambra - 1963); surgindo
daí uma temporalidade espacializada, estruturando-se,
portanto, como um ponto a partir do qual se planificam as linhas
conformadoras do que está se cumprindo como objeto de
conhecimento. Ora, se determinada situação existente
agora começa a ser percebida em confronto, comparação
ou através de antes, significa que ela é percebida
através de outra, embora semelhante, mas outra. O que
se dá, então, é o conhecimento analógico,
dedutivo e, portanto cartesiano. A mesma situação
de agora pode também ser percebida através da estrutra
temporal de depois, o que já implicaria em visualização
de finalidades canalizadoras, justificativas, explicativas do
que-aqui-agora conheço; por sua vez, é diferente
do memorizado ou imaginado (antecipação onde o
pensamento é mediador). Esses deslocamentos temporais
fazem com que o fenômeno que está sendo conhecido,
apreendido perceptivamente ou categorizado se transforme em um
espaço, ponto de interseção do tempo, que
como tal já se torna uma variável posicional, espaço,
portanto. Estas explicacões acerca da atitude mágica
são enfaticamente demonstradas como fundamentações
concretas do conhecimento em toda posição metafísica.
Tal é o caso, por exemplo, de Kant, em seu conceito de
categorias lógicas, o a priori, isto é, a possibilidade
do conhecimento reside além ou antes do que se está
dando a conhecer. O homem foi durante muito tempo conhecido e
consequentemente explicado magicamente. O animismo, espiritualismo
e idealismo são etapas sistematizadas dessa posição.
O "conhece-te a ti mesmo!" é um típico
representante destas abordagens: "O¡ homem, conhece-te
no que não és, para que sejas um homem!".
Este apelo vocativo enfeixa bem toda a atitude básica
da preocupação mágica de conhecer-se. Esta
abertura para procurar o que não era conhecido do homem
no homem era resultante do a priori de que o homem era um fruto
da criação divina: conhecer a criatura implicava
em desvendar, conhecer o Criador, portanto, em um deslocamento;
o distanciamento surgiu e o homem passa a ser conhecido através
de verdades genéricas desde moira, maktub, até
Deus, Santíssima Trindade, etc. Aí surgem indiferenciações
entre o que é criado ou o que cria, a prova do Criador
passa a ser a criatura e vice-versa, a superposição
existe. Somente através de transcendências que estruturem
dogmas se poderá conhecer o homem. O "Conhece-te
a ti mesmo" socrático, agora já na Summa Theologica
de São Tomás de Aquino, é amar, e amar é
ter fé, o conhecimento é a transcendência,
tese desenvolvida por Kant e fundamentante do inconsciente para
Freud. Concluindo, verificamos que apesar de todas elaborações
decorrentes do auto-referenciamento, distanciamento e superposições
contextuais, o homem não se conheceu, como homem enquanto
ele mesmo, pois nunca se viu senão através de absolutos,
daí sua essência relacional não ter sido
apreendida, pois ele se buscava conhecer negando-se como passível
de conhecimento, quer dizer, sempre se colocava como um ponto
sem plano, à medida que se fazia uma pontualização
centralizadora do conhecimento de si em si mesmo. Fenomenológica
e objetivamente falando, o conhecimento do homem, do mundo e
dos fenômenos existe pela apreensão das relações
que os constituem e que são por eles constituídas.
. 59 - Essa distorção ocorreu também com
os materialistas, que apenas trocaram a ordem hierárquica:
a matéria precede a idéia. A solução
do problema foi feita pela fenomenologia, dado à apreensão
da totalidade, Gestalt, homem-mundo, através do conceito
de consciência como intencionalidade (Husserl).
[Extraido do livro "Psicoterapia
Gestaltista - conceituações",
Capítulo IV]
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