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Psicoterapia Gestaltista - Conceituações

Vera Felicidade de Almeida Campos, Edição da Autora, Rio de Janeiro, 1973


1973, 1ª edição -1976, 2ª edição-Opção Editora -1988 - 3ª edição-Edição da Autora

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Extrato


Capítulo III - Dimensões Básicas Estruturantes - Desestruturantes


Carência Afetiva


A carência afetiva , dentro da conceituação gestaltista, é intrínseca ao ser humano, ao contrário do que ocorre em outras conceituações psicológicas - psicanálise, por exemplo, onde a carência é entendida como resultante de um processo deficitário, de relacionamento afetivo, principalmente fundamentado no que se refere às figuras paterna e/ou materna.

Quando dizemos que a carência afetiva é intrínseca ao ser humano, estamos dizendo que ela é tão configurativa do humano, como o são os olhos, braços, pernas, etc. Localizado o tema, focalizemos seu significado. Por carência afetiva entendemos a necessidade ou possibilidade de relacionamento com o outro; dentro desta nova compreensão (abordagem da carência afetiva), torna-se claro o por que de sua colocação extrínseca, sinônima de problemática emocional, dada pelas outras teorias psicológicas, isto porque devido à falta de visão global unitária, ou seja, à esquematização elementarista do fenômeno comportamental e existencial humano, apreenderam apenas a carência afetiva resultante de uma necessidade de relacionamento com o outro, configurativa de estruturas inautênticas, portanto, advindo daí todo um tratamento distorcido do tema, pois que unilateralizado.

A carência afetiva configura o outro no sentido de possibilidade ou de necessidade de relacionamento. Sendo intrínseca, assumida, a carência possibilita o outro; caso contrário é uma barreira, começando o outro a ser uma meta, um obstáculo. Se a carência está cada dia menos assumida, ela vai ficando cada vez mais extrínseca e à minha volta vai se constituindo um vazio muito grande - o chamado autismo. O autismo corta a possiblidade de relacionamento, é uma negação da minha imanência carencial, possibilitando assim o surgimento da divisão eu e o outro, nível de realização e nível de aspiração, quantidade e qualidade, etc. Ficando assim, torna-se impossível para mim ser unitária, aceitar-me como possibilidade de relação. Não me aceitando como possibilidade de relação, não me auto-determino em relação ao outro. Não sou disponível, nem autêntica. Utilizo o outro como instrumento em função de minhas necessidades. Tudo porque não tenho o contexto, o espaço da carência assumida que é o lugar do outro, ficando assim com o vazio existencial; em outras palavras, solidão diante de mim, portanto extrínseca, desde que pela minha pontualização auto-referenciada não houve coexistência vivencial. A solidão por auto-referenciamento e não por assunção de carência foi transformada em objeto de queixas, dado extrínseco, consumível, portanto, enquanto fantasma que povoa e substitui o outro. 36

Voltando ao conceituado, verifiquemos o funcionamento carencial, a atitude de carência afetiva - esta figura, totalizada em necessidade ou em possibilidade de relacionamento.

O nível de estruturação das necessidades relacionais (e isto não engloba apenas a carência afetiva) é o de sobrevivência, enquanto que o nível de estruturação das possibilidades relacionais é o existencial. Neste momento de nossos desenvolvimentos explicativos, as tessituras conceituais se espessam e para que não se tornem emaranhados, clarifiquemos o que antes já foi sinteticamente globalizado.

O homem está-no-mundo e deste posicionamento surgem todos os seus relacionamentos que sempre estão diante dele, mas que podem ser vivenciados como antes, depois e agora, por, para e como, autenticamente, inautenticamente, participativamente, contemplativamente, alienadamente, assumidos ou negados, distorcidos, enfim, as vivências podem ser totais ou parcializadas distorcidamente em níveis sociais (aí entendendo-se cultura, economia, família, religião, etc.) e biológicos. Por que consideramos a vivência do social (entendendo-se por social todo o universo da sociedade com suas instituições ideológicas, políticas, familiares, religiosas, industriais, profissionais, científicas, literárias, de cultura e civilização) assim parcializada? Por que o biológico seria parcializante? A resposta a estes questionamentos nos remete às conceituações iniciais do que é o ser humano. Recapitulemos rapidamente. O ser humano é temporalidade enquanto vivência psicológica; seu relacionamento com seu situante constituinte, o mundo, o outro, é feito através da percepção, consciência, intencionalidade, daí sua vivência psicológica ser toda sua condição de relacionamento-conhecimento. Além disso, de ser temporalidade, processo relacional, o ser humano é um organismo, biologicamente estruturado com tal possibilidade. A vivência do social, a ele extrínseca, se dá em condições de aderência, como parte de um todo que é o seu processo de estar-no-mundo, mas ocorre que nesta vivência pode surgir uma distorção parte-todo, ocasionando assim a unilaterialização - o homem-máquina, o homem-instituição, o homem-obrigação, o homem-coisa ou como pensam alguns, achando que isto explica e define o homem, o homo socius, homo economicus, homo intelectus, etc. 37

O biológico é o estruturante, relembrando o círculo que através da translação de sua base configura o cilindro 38. O espaço da dinâmica processual humana é o contexto (vide isomorfismo). Quando nos situamos apenas na faixa do biológico, não nos relacionamos, apenas estamos situados, parcializados portanto. Visualizados os níveis de parcialização, façamos um relacionamento dos mesmos com os temas referentes à autenticidade e inautenticidade já abordados.

Para efeito de configurações didáticas que são simplesmente descritivas (daí as analogias plastificantes), entendemos por vivência coisificada as vivências espacializadas, aderentes, não transcendentes, não humanas, embora que dos homens, e, chamamos a isso deslocamentos, configurações e estruturações dados no nível de sobrevivência, onde o homem está reduzido a uma simples condição de resposta frente às demandas do mundo, e esta resposta nada mais é que ajuste, procura de ajuste ou desajuste, sempre resposta ao social, à civilização - boas maneiras, fazer parte de um clube, ter uma profissão: maneira formalizada e esquematizada de ganhar a vida, tanto quanto de justificá-la, ter filhos, propriedades, carteira de identidade, ser delinquente (a marginalização também é padronizada), revolucionário, religioso, etc. - daí ser um sobrevivente, contingente, tonalizado por limites extrínsecos, códigos, rótulos, regras, técnicas, ciências, enfim, estar aprisionado ao que convencionou chamar de sua condição humana, natureza humana que, sendo isto, é alienante, pois sendo dele divergente, externa, o coloca na posição de copiador, executor, mantenedor, etc, 39.

O homem social responde, luta, transforma, situa-se, progride, adapta-se, adquire funções, tem e faz, sobrevive, domina e vence a natureza, cria 40. Tudo isso, decorrente da vivência do social, já é um escoadouro, uma saída, tanto quanto uma criação, progresso e transformação de seus espaços por motivações biológicas, reduzidas e explicadas através de sexo, fome, sede e sono, basicamente 41.

Estas coisas existem. Não são boas nem más, certas nem erradas, são parte do todo. São o nível de sobrevivência, mas não esgotam nem definem o homem, são seu ponto de partida, estão aí para serem assumidas e transcendidas, mas também para serem obstáculos, limites. Havendo a transcendência - isto é possível através da dinâmica relacional - se dá uma transformação de quantidade em qualidade, e surge o nível existencial, transcendente porque relacional e não posicionante, dando margem ao homem igual a ele mesmo, sem padrões extra (Deus, sociedade, cultura, etc.) aderentes; ele é a medida dele próprio, única possível para sua singularidade, sua qualidade humana. [pags.42 a 47]




NOTAS:

. 36 - A vivência de solidão acarreta angústia, tensões, ansiedades tanto quanto se constitui em uma justificativa frente à impotência do estar sozinho.

. 37 - A não apreensão da globalidade relacional homem-no-mundo, por parte dos marxistas, foi responsável pela hierarquização das necessidades humanas; daí partirem para outra distorção - a explicação dos relacionamentos, do homem e da sociedade, do comportamento humano através de ordens econômicas e suas implicações; distorção, sim, pois que equivale à visão do todo partindo de um elemento de explicação - absolutismo negador de dialética que é incoerente com a fundamentação marxista. Esta incoerência não assumida levou a análises dualistas, criadoras de mitos (massificação, tecnologia, etc.). As várias concepções religiosas também distorceram. Têm atitude semelhante à marxista. Esta igualdade aqui estabelecida, entre concepções religiosas e marxistas, pode parecer estranha, absurda, errada, entretanto, não havendo qualquer a priori, torna-se clara, tanto no nível de dualismos, elementarismos, valores a atingir, hierarquizações, absolutismos, quanto nirvanas a conquistar, ideais e dogmas a manter, preservar e divulgar; mudou-se apenas os objetos polemizados (Deus - propriedade privada).
Os conceitos do homo socius, homo intelectus, homo economicus são classificações de Spranger, tipificação elementarista, negadora da essência globalizadora do humano.

. 38 - O conceito de mundo com suas conotações de realidade, sociedade, universo físico-relacional é aqui usado no sentido de realidade fenomênica segundo o ponto de vista fenomenológico onde o fenômeno é a evidência percebida enquanto realidade, sem dualismos. Daí o estudo das evidências, essências, aparências, manifestações e realidades serem estudos sobre o que me é dado a conhecer, sobre minhas percepções.

. 39 - Temas correlatos aos aqui propostos são encontrados no livro de Rollo May, El Dilema Existencial del Hombre Moderno - Buenos Aires, Paidos, 1968.

. 40 - A respeito, pensar no problema da tecnologia, know-how, massificação, alienação, nas teses marxistas e marcusianas a respeito.

. 41 - Aí fica fácil entender a distorção que ensejou a psicologia behaviorista, principalmente Skinner e suas teses de condicionamento operante, tanto quanto o protesto marxista e magia das teorizações e promessas religiosas, tentativas de dar novas luzes ao restrito do limite.


     
©1996, 1997. 1998, 1999, 2000, 2001, 2002 - Vera Felicidade de Almeida Campos
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