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Individualidade, Questionamento e Psicoterapia Gestaltista
Vera Felicidade de Almeida Campos, Alhambra, Rio de
Janeiro, 1983
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Extrato
Capítulo III - Neurose - Esvaziamento
do Presente
Por que vivenciar a realidade, o outro, eu
mesma enquanto representação (distorção,
símbolo) é mais comum, mais frequente?
Koffka, na página 17 de seu livro The Growth of the Mind
- an introduction to child psychology, editado por Littlefield,
Adams & Co., ao comentar os métodos objetivos de experimentação
dos behavioristas, diz: "Se alguém tem apenas a capacidade
de dar tais respostas como os outros possam observar, ninguém
seria capaz de observar nada". Ponto crucial, confronto
entre objetividade-subjetividade, dois lados da mesma moeda,
que se antagonizam com o conceito de vivência (Erlebnis,
de Husserl). O comportamento humano é uma expressão
da vivência relacional do ser humano consigo mesmo, e/ou
com o outro, e/ou com o mundo e/ou com seu contexto, estruturado
em um espaço cultural, social, geográfico e em
um tempo: passado, presente ou futuro. Este embaralhamento, sincronização
ou desincronização, organiza-se por uma trajetória
dada pelo outro, que é o semelhante ou o dessemelhante
(ser humano, animal, planta, conjuntura ou objeto).
Coloquemos tudo entre parênteses e vejamos a trajetória,
a relação. Aí chegando temos uma figura
que é estruturada por um fundo: a motivação.
Todo comportamento humano expressa uma motivação.
Motivo é o que dirige, desperta e mantém o comportamento.
Os motivos são extrínsecos ou intrínsecos
às relações vivenciadas, podem ser aqui-agora,
ali-antes, além-depois. Entender e apreender as motivações
humanas são os objetivos do psicoterapeuta gestaltista,
a fim de psicoterapicamente dimensioná-las, estruturando
individualidades.
Presentificadas, as motivações são as possibilidades
orientadoras e demarcadoras de nosso comportamento/relacionamento.
Estruturadas enquanto passado, as motivações se
transformam nos códigos, padrões de comportamento,
os a priori, que regulam nosso comportamento, são prévios
congeladores, estagnizadores do estar-com-o-outro-agora-aqui-no-mundo.
Desencadeados pelas aspirações, metas, os motivos
passam a ser os faróis balizadores de nosso comportamento,
funcionando como imãs polarizantes e esvaziadores do presente.
Passamos, corremos pelo dia-a-dia, pelo cotidiano a fim de chegar
ao lugar postulado como nirvânico.
Demos um contexto, um fundo que torna mais inteligível
a frase de Koffka: "Se alguém tem apenas a capacidade
de dar tais respostas como os outros possam observar, ninguém
seria capaz de observar nada".
Nós podemos observar, descrever as forças, os constituintes
da relação, mas nunca a relação que
os configura, a relação que se estabelece, que
se vivencia. Lembrando Husserl, diríamos que a vivência
é a Wesenchau do humano. A essência do ser humano
é relacional. A relação é a dinâmica,
a trajetória motivac ional, individualizada ou desindividualizada,
humanizada ou desumanizada (coisificada = reificada). E, por
que vivenciar a realidade, o outro, eu mesma enquanto representação,
distorção, símbolo é mais comum?
O ser humano existe em um tempo e em um espaço. A temporalidade
é a dimensão processual e dinâmica do humano,
tanto quanto a espacialidade o é. O corpo, o organismo,
é o móvel situado em um plano (mundo, sociedade,
cultura, família) que por acão de forças
contextuais nele se desloca, se movimenta. Acontece que este
corpo, este organismo, se auto-regula, discrimina sua trajetória
mantendo-a ou modificando-a graças às relações
discriminatórias que estabelece com seus contextuadores
seu plano, seu espaço. Tem uma autonomia que é
dada pela vivência de seus limites ou de suas dependências,
faltando-lhe a referida quando ignora seus limites, realizando
apenas os movimentos a ele possibilitados. Perceber o limite,
discriminar os referenciais que o constituem, destaca-o de seu
mundo, individualizando-o, estruturando seus caminhos de ação,
suas motivações de vida. Ao caminhar e refletir
sobre isto, ao perceber sua trajetória, ele integra a
continuidade, a temporalidade, já não é
mais um simples alvo de forças, resultado da ação
das mesmas. O movimento de estar se deslocando em um plano, espaço,
pode graficamente ser representado:
A percepção de seus limites, é graficamente
configurada:
Ao integrar seus limites, ele se temporaliza:
A interseção das relações espaciais
com as temporais estrutura planos que passam a ser situantes
do ser-no-mundo podendo assim ser balizadores do mesmo. Novos
deslocamentos, novos interesses, novas interseções,
novos planos, nesta dinâmica as situações
começam a se repetir, ganhando pregnância a representação
das ações, dos comportamentos. Perceber isto, com
isto se relacionar, procurar direções possibilitadoras
ou convergências mantenedoras, é uma vivência
constante. Esta continuidade de vivências espacializa o
tempo através da memória e do pensamento. A percepção
é extrapolada e/ou esclerosada. O processo vira meio,
passando a ser ponte, laço de união entre eu e
o outro, eu e o mundo. Perceber é conhecer e relacionar-se
com o existente, é qualificar, colorir o fenômeno,
o que está se dando: em mim, no outro, no mundo. Categorizar
o percebido, dele me apossar, através dele me autodeterminar
e regular, estrutura caminhos, direções, residuos
perceptivos, espacialização do presente, através
da memória. Passamos a saber, extrapolação
do conhecer pois que é um referencial situado de vivências,
relacionamentos e configurações: sabemos, experimentamos,
temos um contexto, um fundo que vai nos possibilitar/impossibilitar
as percepções. Já temos marcas (engramas)
responsáveis por direções e caminhos. A
novidade, a complexidade, a closura, a pregnância do mundo,
do outro, do presente, fica esmagada ou involucrada, embalada
por este fundo. A memória preside, induz e orienta nossa
vivência do presente. O pensamento, que é a criatividade,
o prolongamento perceptivo, vira, via de regra, um prolongamento
mneumônico, pois que a percepção existe em
função do referencial/fundo da memória.
Momento sério e grave, caótico na existência
humana: o presente passa a ser um vazio, lacuna que serve de
contexto às vivências humanas. Sempre estamos vivendo
em um presente, muito embora nem sempre estejamos vivenciando
o presente.
Este vazio temporal responsável pela pregnância
do passado (medos, acertos, experiências, verdades, mentiras)
ou pela pregnância de futuro (metas, desejos, ambições,
etc.) nos transforma em móvel submetido à ação
da inércia; perdemos nossa autonomia, somos o que os outros
nos permitem ser, através de seus sistemas, suas regras,
suas leis. Passamos a vivenciar no presente a representação
de nós próprios (nossos desejos, ilusões,
anseios, medos, expectativas), a representação
do mundo, da sociedade, da cultura: seus slogans e regras de
como fazer. Cabe-nos apenas distorcer a realidade, ser neurótico.
Distorcemos a realidade, passamos a vivenciá-la, ao outro
e a nós próprios como representação,
como símbolo. É a aderência, a contingência,
o valor. O atributo transforma-se no substantivo, e assim o substantivo,
o sujeito, vira atributo, apêndice de um sistema valorativo,
onde o homem vale pelo que aparenta, pelo que tem, pelo que representa
enquanto produtividade, cultura, sabedoria, dinheiro. Esta alienação
possibilita a homogeneização necessária
para transformá-lo em porta-voz e baluarte de sistemas
despersonalizadores. É a neurose. O comportamento passa
a ser motivado pela sabedoria adquirida (memória): manter
o que conseguiu, evitar o que obstaculiza e é motivado
também pelos anseios de atingir aquilo que vai realizar,
justificar, salvar a própria vida (pensamento): filhos,
patrimônio, pátria, ciência, religião,
ideologia, conseguir um prêmio nobel, etc.
Esta alienação, coisificação resultante
de não vivenciar o presente a não ser como vazio,
contexto das representações do real, do outro e
de mim, exilam a motivação, a alegria, o amor,
do cotidiano do ser humano, pois se todo comportamento é
motivado e se a situação é motivante à
medida que é nova, complexa, pregnante e impõe
um fechamento, uma closura - criando uma sensação
de tarefa interrompida - coisa a realizar, vemos que no vazio
existe homogeneização, não existem sinalizações,
falta complexidade, impasses e consequentemente nada é
novo, tudo está completo e acabado.
Acontece que todo comportamento é motivado, daí
que utilizamos o vazio do presente como ponte entre o futuro
e o passado. Preconceitos, hábitos (passado) e metas,
aspirações (futuro) transformam a repetição,
a homogeneização em novidade; o acerto, o erro
viram complexidade a ser mantida ou evitada; a sabedoria, a experiência
da existência tornam-se a complementação
e realização de tarefas, o que muitas vezes angustia,
deixando como pregnante a motivação em salvar a
própria pele, continuar sendo o que eu tenho conseguido
ser. Neste processo o ser humano perde o que o caracteriza e
define como humano: o questionamento resultante do diálogo
que ele estabelece com o seu presente. Perdendo este questionamento,
ele se coisifica, segue a corrente, desindividualizando-se em
função de seu contexto.
Os sistemas sociais, políticos e econômicos, na
busca de manutenção de seus postulados e aderências
valorativas, sempre buscam neutralizar as antíteses por
eles geradas, daí que seus pontos chaves, seus baluartes
- a educação, o trabalho, a família, a moral,
a ciência, a filosofia, a religião - procurem sedar,
aplacar, evitar questionamentos à sua própria estruturação;
entretanto, como o todo não é a soma das partes,
sempre surge alguma dimensão presentificada, representada
por indivíduos que iniciam os questionamentos, as antíteses.
Esta dialética, este atrito, fagulhas de presente, energiza
o humano para vislumbrar saídas, embora minimizadas pelo
esmagamento fragmentador causado pelo atrito, pela opressão.
Surge nova escola, nova proposta de trabalho, nova moral, questionamentos
às verdades filosóficas, morais e religiosas milenares.
Surge a marginalização, os anti-sistemas, é
antítese, mas não é mudança, pois
a preocupação ainda não é por individualização,
mas por melhores condições de vida, por mais espaço,
e aí a massificação, a despersonalização
permanece, pois o homem, não tendo integrado o outro,
seu principal limite, não tendo integrado seus limites
biológicos, permanece afastado de sua temporalidade enquanto
presente, espacializando-se, dedicando-se a vencer os obstáculos
de seu-estar-no-mundo, em vez de transcendê-los, transformando-os.
Uma escola, uma família, uma sociedade que baseassem as
suas estruturas no relacionamento questionante e presentificado
daquilo que é transmitido, levariam a uma integração
da temporalidade. A presentificação abriria novos
caminhos nos emaranhados dos sistemas. Haveria diferenciação
na homogeneização do presente esvaziado. O mesmo
ocorreria enquanto relacionamento humano. Estar-com-o-outro-aqui-e-agora
seria revitalizador, era a maneira de ressuscitar a coisa agarrada
a outra-coisa-que-me-segurou-antes-e-vai-me-apoiar-me-aceitando-sempre.
Outro aspecto muito importante é o da comunicação
enquanto linguagem. A palavra é um instrumento forjado
pela cultura. Assim formalizada a linguagem informa mais do que
expressa. Representa mais do que apresenta, sendo por gênese
alienante. É um símbolo que unifica, quando já
decorre de divisão e somatório de vivências.
Nomear alguma coisa ou situação é expressar
um significado relacional apreendido, tanto quanto cunhar uma
fôrma para infinitamente reproduzi-lo, descaracterizando-o
de seus constituintes básicos; em filosofia, como visão
do mundo, isto é muito enfático ao estudarmos conceituações
feitas em outra cultura, outra língua. O significado coloquial,
individualizado da palavra é uma busca de individualizações,
daí os jargões, a gíria, os usos semanticamente
deslocativos da palavra, os neologismos constantes na linguagem
das crianças, no início da aquisição
da mesma, as palavras especiais e individualizadas dos amantes
quando, entre si, designam o cotidiano, os outros, a si mesmos.
Com a espacialização do tempo esta busca também
se coisifica.
O convencional, o modal, o quantitativo sublevam a essência,
a qualidade, a autenticidade, o homem-no-mundo é substituido
pelo mundo-do-homem. Esta particularização, parcialização,
também desindividualiza. "Cada cabeça é
um mundo", é sábio, experiente, mas não
é globalizador do fenômeno humano, basta um relacionamento
entre duas cabeças, dois mundos, para ser destruido este
axioma basilar de nossa cultura e, por incrível que pareça,
de nossa dita ciência psicológica.
Temos agora contexto (fundo) para amplamente responder à
pergunta (figura): por que vivenciar a realidade, o outro, eu
mesma, enquanto representação (distorção,
símbolo) é o mais comum?
Podemos entender que a vida do ser humano é feita através
de ilusões (símbolo, linguagem, dinheiro, valores,
etc., etc., etc.), a própria sensação de
imortalidade, o querer ter filhos para se continuar, para ter
alguém que cuide de mim quando eu envelhecer, quando eu
adoecer e não o querer ter filhos para colocar um ser
no mundo, para recriar em sua dimensão individualizada
o universo. A não vivência dos limites existenciais
é a ilusão, é a neurose. A vivência
humana, como representação da realidade, devido
à não presentificação, deixa-nos
claro que a ilusão é a matéria-prima do
humano. Basta pensar nas eternas relações desencontradas
entre homem e mulher, amigos, pais e filhos, etc., nas religiões;
nas ideologias; no morrer pela pátria; no trabalho de
recuperação existencial; na ajuda psicológica.
Quando o ser humano está presentificado, unitariamente
estruturado, ele adquire consistência, ele não tem
ilusões, ele tem crenças que são decorrentes
de descobertas, encontros, confiança, participação
no mundo, com o outro e consigo mesmo. O amor pode ser uma ilusão,
quando meta, necessidade; é uma crença, uma vivência
significativa quando decorrente do encontro entre duas individualidades,
daí serem completamente estranhos e alheios ao amor os
cúmes, traições, omissões, etc.,
típicos dos referenciais de ilusão de neurose.
[pags. 38 a 45]
Capítulo IV
Motivação e Alienação
Já vimos que o motivo é o que
desperta, mantém e dirige o comportamento, tanto que as
motivações quando presentificadas são as
possibilidades orientadoras e demarcadoras de nosso comportamento/relacionamento.
Não esqueçamos que ao vivenciar o presente como
vazio, o ser humano perde o que o caracteriza e define como humano:
o questionamento resultante do diálogo que ele estabelece
com o seu presente. Perdendo este questionamento, ele se coisifica,
segue a corrente, desindividualizando-se em função
de seu contexto - é a alienação.
Estar motivado é participar integralmente do que está
aqui e agora comigo, é presença, é presente.
Na neurose, isto é, na vivência do presente através
dos filtros distorcedores, representados pelas metas e pelos
a priori, a motivação não é uma participação,
pois que é uma necessidade engatilhada através
de esquemas, é o automático-desumanizador que utilizamos
para fazer frente às demandas contextuais alienantes.
Não há diálogo, não há questionamento,
apenas obedecemos ou desobedecemos a ordens, apelos, exigências.
Estabelecendo o diálogo com os outros, com o mundo e comigo
mesmo, situo-me, enquanto possibilidade de relacionamento, ser-no-mundo
autodeterminado em relação aos limites e transcendências
situacionais, relacionais.
Penso, ao prolongar minha percepção, como continuidade
do diálogo existente entre mim e a realidade; decido,
quero, não quero, desejo, concordo, discordo. Autodetermino-me
em relação às variáveis circunstanciais
e estruturais. Sou, com condição de fazer e ter,
ao exercer as minhas possibilidades humanas, de ser, neste diálogo
onde respondo e pergunto. Sem o diálogo, sem o outro,
o interlocutor, não há perguntas, nem respostas.
Existem dogmas, regras, esquemas que necessitam ser atendidos.
Neste reino de necessidades e contingências estrutura-se
a alienação como matéria-prima residual
da despersonalização humana. Este aproveitamento
do que antes fora humano realiza-se em uma aparência de
vida, de humano, para o que já está desvitalizado.
É o ajuste social e biológico conseguido pela deglutição
autofágica das possibilidades existenciais. Deixo de existir,
sobrevivo seguramente apoiada em padrões que me permitem
o direito de sobreviver. Luypen, fenomenólogo holandês,
já dizia: "Quando se trata de direito, não
há legitimidade."
Ninguém vai discutir se temos o direito de ter os nossos
próprios olhos, as nossas próprias mãos;
eles são intrínsecos, legitimamente nossos, mas
pode se discutir sobre o como fazer com nossas aderências:
deixar o carro em um local de estacionamento proibido, usar qualquer
tipo de roupa, etc. Dentro da massificação e distorção
perceptiva, as aderências se transformam em constituintes
intrínsecos do ser humano; exemplo: eu sou o que eu represento
- meu carro. meu status, minha profissão, minha conta
bancária me definem e situam, autorizando-me a ser-com-os-outros.
Esta distorção provoca a alienação,
esvaziando o presente, substituindo o outro como constituinte
de mim, ao figurá-lo através dos padrões,
das regras, do sistema.
No nível de sobrevivência, de alienação,
neurose e coisificação do humano, os sinalizadores,
os motivadores de nosso comportamento são as nossas necessidades
construidas pelo armazenamento de experiências, exigências,
que buscam solução através de configurações
previamente postuladas. Estes a priori dirigidos às metas
são esvaziadores do presente e desestruturadores das possibilidades
humanas. O homem assim constituido é apenas um organismo
biológico dentro de um sistema social [4]. É um
corpo no espaço, dinamizado pelos seus ciclos fisiológicos
e aplacado, sedado, explicado pelos seus rotuladores sociais.
Perdeu sua humanidade, desindividualizou-se, ficou sem autonomia,
pois deixou de estabelecer o diálogo, exercer o questionamento,
vivenciar o presente, ser-no-mundo-com-os-outros.
Por que ele faz isto? Ou por que acontece isto?
Homogeneizações contextuais e relacionais levam
às representações, às simbolizações
usurpadoras da realidade, ele só percebe o que está
diante dele, o que não é ele. Esgotando-se nesta
relação, através de seu auto-referenciamento
convergente, ponto polarizador de tudo que o cerca, ele se despersonaliza,
ficando com um acúmulo justaposto de vivências e
relacionamentos onde falta um centro, uma autonomia, uma individualidade
resultante da percepção de que eu-sou-com-o-outro-aqui-e-agora.
Esta alienação de suas possibilidades existenciais
foi o preço pago pela ilusão de garantia e segurança
que é dada pelo fato de estar apoiado nos grupos majoritários
e determinantes dos sistemas sociais. A corrida pela boa posição,
pelo dinheiro, pela respeitabilidade exigiram que se seguisse
um caminho de há muito já trilhado, com profundos
sulcos, na realidade abismos engolidores de individualidades.
Evitar estes buracos, estas armadilhas, requer aprendizado, orientação
e para isto existe família, religião, psicoterapia
de apoio e ajuste, clubes, escolas de etiquetas, enfim todas
as instituições massificadoras, salvadoras.
Onde está a motivação? Onde está
o é que complexo, insinuante, pregnante e novo? [5] Em
nada, absolutamente nada. Na alienação, a questão
é como ter habilidade, como ter instrumentos, como adquirir
condições, perícia para atingir o almejado
dinheiro na ponta do pau de sebo [6], ou como atingir o nirvana
da iluminação, do prazer, do despreendimento. Qual
o caminho da satisfação, da riqueza, da bondade,
do reino dos céus, da bem-aventurança e poder?
Isto é o que querem aprender e saber quando vivem na alienação
dos padrões e sistemas constituintes. Não havendo
nada novo, nada que nos motive enquanto presente e prensença,
somos endereçados a repetir caminhos; supressa a possibilidade
de criação, resta-nos a repetição;
a habilidade em repetir, copiar e fazer cada vez melhor, com
menos custo, menos ônus e mais lucro, mais vantagem. Surgem
assim os valores como determinantes e motivantes de conportamento.
Novas representações, símbolos responsáveis
por distorções ensejadoras e mantenedoras de fragmentações
e omissões, caracterizadoras de coisificação,
de neurose, da alienação humana, criadora de metas
e a priori esvaziadores do presente.
A vivência norteada, situada e contextuada em valores é
neurotizante, alienante, pois o valor é aderente à
nossa humanidade, ao nosso estar-no-mundo, não integra,
podendo desintegrar quando tentamos nos situar e com eles nos
relacionar dedicadamente, pois que valores são símbolos,
rótulos, regras, padrões extrínsecos à
globalidade individualizada do ser humano. Valores criam normas,
critérios de certo e errado, bitolas configuradoras do
estar-no-mundo. São faróis, iluminam nossa estrada,
situam. Extraem, descentralizam nossos referenciais individuais,
coisificam-nos, fazem que nos alienemos de nós próprios,
pois que não temos mais motivações resultantes
de vivências de nosso presente, mas sim resultantes de
demandas previamente configuradas e programadas. Somos atores,
títeres de espetáculos montados, apenas participamos
das coisas a nós destinadas, às quais temos direitos
a duras penas conseguidos pelo nosso esforço, nosso status,
nossa família, nossa moral ilibada, etc.
O organismo biológico aprisionado ao sistema social é
o homem massificado, despersonalizado, alienado, neurótico,
que não vivencia o presente, embora nele esteja vivendo.
É altíssimo o preço deste absurdo, desta
contravenção ao natural perceber e me relacionar
com o que-está-aqui-e-agora-comigo - é a desumanização,
a morte do ser humano enquanto possibilidade, liberdade, autonomia
e individualidade. Neste universo de desumanização,
de morto-vivos, porém coisas eficazes e atuantes, onde
quase tudo é dimensionado e programado para suprir as
necessidades de manutenção do estabelecido, não
há rupturas, pois que a quebra, a mudança, o novo
é o caos, a desordem, o desespero. Surgem os preservadores
e conservadores da ordem: instituições (família,
casamento etc.), e as ciências, principalmente as sociais,
voltadas para o homem e preocupadas em explicar que ele é
complexo, agressivo, precisando ser domesticado, vêem as
religiões prometendo salvação para as almas,
vitória nas concorrências, nas competições
do sistema, através de sacrifícios, doações,
promessas, etc. Os sistemas procuram apagar a chama de possibilidade
humana que ainda existe, apesar de fraca, daí o esforço
para situar o homem em seu passado, seus condicionamentos, animando-o
com esperanças e crenças de futuro, negando-lhe
assim o remédio ressuscitador: a vivência do presente.
O ser humano é um organismo biológico dentro de
um sistema social com infinitas possibilidades de relacionamento
com os seus situantes e configurantes. A essência humana
é relacional, ou a vivência constitui a wesenchau
humana [7] e é a partir desta essência que o homem
se constitui como homem ou se aliena afastanto-se destas demandas
relacionais ao trocá-las por garantias posicionais. Ao
se deter, imobilizando seu movimento, ele se desumaniza, aliena-se
de suas possibilidades, estruturando-se através de suas
necessidades, virando escravo de seus sistemas sociais, familiares
e de seus desejos sexuais, intelectuais, etc.
Em outro nível, discutamos este assunto: motivação
e alienação,humanização e desumanização.
A essência humana, o que é configurador, o quantitativo,
intrínseco ao homem é a possibilidade de se relacionar
consigo mesmo, com o outro e com o mundo, em outras palavras,
a possibilidade de relação é uma qualidade
humana. Esta qualidade humana resultante de uma diferenciação
neurofisiológica, orgânico-biológica, transcende
portanto o dado orgânico, criando uma nova gestalt: o homem--no-mundo,
pela transformação de quantidade [8] e a evolução;
a dinâmica biológica realizando-se e sendo transcendida
pelas próprias imanências constitutivas: as relações
ensejadoras.
Este processo é continuo, quando quebrado não desaparece
a qualidade básica do humano - sua possibilidade de relação
- mas fica limitada, referenciada aos padrões de repetição
mecânica; nestes compassos binários, os ciclos dinâmicos
estereotipam configurações necessárias,
de sobrevivência e a qualidade humana fica apenas sobrevivendo
ao mínimo, para a manutenção do esforço.
Quanto mais auto-referenciadamente se estabelecem relações,
menos se qualifica como possibilidades, mais se situa como quantidade
necessária de informação, movimentos e esforços
para a manutenção das organizações
massificantes. A psicoterapia gestaltista busca, ao questionar
e motivar o ser humano para a vivência do problema como
presença aprisionante e restritiva, reestruturar seus
relacionamentos, conferindo-lhe assim uma qualidade humana. Perceber
que é um problema, que está auto-referenciado,
motivado por necessidades, esvaziado enquanto presente, abre
perspectiva, situa de uma maneira nova diante da realidade. O
indivíduo começa a ficar motivado pela vivência
presente de sua problemática, ao percebê-la de uma
maneira nova, pregnante e complexa. Esta diversificação
vivencial, resultante da antítese psicoterapêutica,
propicia conflitos, descobertas, mudanças perceptivas
responsáveis por mudanças comportamentais.
A percepção da própria problemática,
enquanto entrave existencial, cerceamento de possibilidades,
desaliena, pois que desaparece o deslocamento das tensões,
homogeneizador e esvaziante. [pags. 47 a 54].
NOTAS:
[4] - Infelizmente, a Psicanálise,
o Behaviorismo, o Marxismo, enfim a dita ciência social
moderna, por suas fundamentações deterministas
e reducionistas ainda pensam o homem assim. As repercussões
destas fundamentações teóricas são
de inúmeras parcializações, distorções
nas suas proposições práticas de como melhorar,
tratar ou enfocar o homem.
[5] - Complexidade, novidade, pregnância e closura são
as características das vivências de motivação.
Novo é o antagonismo entre o que se percebe (acontece)
e o que se esperava perceber (acontecer): quanto mais organização,
pregnância na situação, contexto vivenciado,
mais motivação, idem para a complexidade e para
a percepção de gestalten que insinuam seu fechamento,
sua complementação, sua closura.
[6] - No Brasil, existe uma brincadeira de crianças, o
pau-de-sebo: enfia-se um mastro, um grande pau de cinco a seis
metros de altura untado de sebo, gordura, tendo na sua extremidade
uma bolsa com moedas ou uma cédula: as crianças
começam a subir para pegar a bolsa/cédula, mas
escorregam, caem, ficando impossível atingir a ponta do
mastro, a não ser utilizando artifícios neutralizadores
da gordura: quem o fizer e conseguir pegar a bolsa/cédula,
é o vencedor, o dono do prêmio.
[7] - Wesenchau utilizada no sentido husserliano.
[8] - É interessante lembrar que segundo a dialética
a qualidade é uma transformação de quantidades.
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