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Relacionamento - Trajetória do Humano
Vera Felicidade de Almeida Campos, Edição
da Autora, Salvador, 1988
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Extrato
Capítulo I - Percepção
é Relacionamento
No ser humano, nada é determinante,
nada é determinado, tudo é estruturado ou apenas
a estrutura é o determinante. Perceber a estrutura como
determinante exila qualquer preexistência, causa, gênese
para a estruturação, pois o que existe é
resultante do encontro de relações configurativas
do estar-no-mundo, do estar com o outro [1].
Ao colocar este tipo de problema queremos afirmar uma visão
não dualista, uma visão unitária que é
nosso estruturante teórico, prático, relacional.
Não acreditamos em natureza humana, instintos, inconsciente,
libido, organon, nos talentos, dores e mazelas recebidos ou aprendidos,
estereotipados pela cultura, família, educações
tirânicas/benevolentes, astros e karmas. Tudo isto pode
até existir, mas não como estruturante do humano.
Em palavras fenomenológicas diremos que a essência
do humano é relacional, isto é, seu constituinte
estrutural é a relação. Nada mais unitário;
já não cabem dualismos, reducionismos, elementarismos,
causalismos. A relação como constituinte estrutural
é uma unidade. O que é relação, o
que a constitui e como se evidencia esta unidade?
Sempre que se filosofou, teorizou, pensou, vivenciou, esta questão
esteve presente, revestida das mais variadas formas, às
vezes até tão fantasiada que era irreconhecível.
A teoria do conhecimento, ao longo dos séculos, conseguiu
uns posicionamentos resumidores: o conhecimento, a idéia,
o pensamento, a alma, criavam o mundo, criavam o homem, o sentimento,
as emoções a realidade, tudo enfim. É a
posição idealista - Platão, Aristóteles,Descartes,
Bergson, Nietzsche (a vontade), Freud (o inconsciente), Jung
(arquétipo), Spinoza (mônadas), Kant, etc. É
Deus criando o mundo, criando o homem, o espírito; é
a idéia criando a matéria. o mundo, o homem, a
realidade, a matéria criando o conhecimento, criando a
idéia, criando o pensamento, o psiquismo, sentimento,
a percepção, o conhecimento - é a posição
materialista: Heráclito (o movimento), Marx e Husserl
em certas fases.
Destes posicionamentos resumidores, duas coisas são pregnantes:
Primeira - As limitações na abordagem, as direções
do pensamento são da direita para a esquerda e vice-versa,
a idéia cria a matéria ou a matéria cria
a idéia. A essência não foi atingida, brigou-se
em cima de um demarcado. Segunda - O lado da idéia como
pré-existente sempre teve mais adeptos, sempre foi o mais
privilegiado, era estatisticamente o melhor, o consensualmente
válido, foi o mais prgnante. Em desenvolvimentos ulteriores
sobre relacionamentos humanos ficará clara a razão
deste auto-referenciamento, desta distorção perceptiva.
Assolados, acossados pelas informações e formações
culturais e acadêmicas, poderíamos pegar um atalho,
que distorcido seria um caminho e criaríamos outra dicotomia:
pensamento tradicional versus pensamento moderno; aí,
diríamos que Lao Tsé, Confúncio, o Hinduísmo,
as cosmogonias africanas, principalmente a Yorubá - mais
elaborada e consistente - devolveram o homem à sua verdadeira
essência, vendo o mundo como ele é. Explicaríamos
ainda, entendendo a história como trajetória, a
pegada do humano, as leis econômicas, enfim, toda a industrialização
e retirada do humano de seu natural ecológico, separação
esta responsável pela sua desumanização.
Explicações são sempre residuais, são
posicionamentos, quebram a gestalt, á medida que estruturam
outras. Diante do mundo, do outro, de si mesmo, existe relacionamento,
vivência. A maneira de globalizá-lo (diferente de
entender, explicar) é vivenciá-lo enquanto integração,
é passar a ser o vivenciado; não sobra sequer espaço
nem tempo para nada. A matéria não ocupa o mesmo
lugar no espaço e quando negamos isto começam as
superposições que nos colocam em contextos outros,
ocasionando distorções. Se quisermos passar estas
vivências para alguém teremos que descrever, registrar.
Este livro é isto: um registro, uma descrição
de vivências, de questionamentos, de trajetórias
do humano.
Como conseguiremos esta descrição sem referenciais
interpretativos, valorativos÷ Conseguindo conceituar,
detectar as unidades estruturantes do relacionamento humano.
Quando penso na relação, está integrado
em mim o conceito de ponto e sua distorção. O conceito
geométrico de ponto diz: "O ponto é a interseção
de dois segmentos de retas", "a reta é uma sucessão
indefinida de pontos".
Penso também na distorção,
na maneira didática de interpretar o conceito, para ficar
mais fácil, para o outro entender melhor; os professores
às vezes dizem: "Ligando o ponto A ao ponto B temos
uma reta". Quando pensamos em retas assim:
o posicionamento quebra a relação,
mas a relação é que muda e gera os posicionamentos
[2]. Se estivéssemos escrevendo um livro de filosofia
poderíamos ficar indefinidamente neste problema e daí
irmos extraindo todas as coisas; seriam interpretações,
maneiras de ver, de estruturar modelos para entender o mundo.
Meu objetivo não é este, não quero entender
nem explicar, quero descrever a relação, o fenômeno
humano de estar em um mundo com o outro, consigo mesmo. Surge
outro conceito integrado em mim - percepção é
conhecimento, é comportamento, é o dado relacional,
é o estruturante do humano. Neste momento não estamos
sendo platônicos, idealistas ao colocar a percepção
como causa, como equivalente de idéia, substitutiva do
inato, do inconsciente? Vamos ver o que é percepção.
Para o psicólogo gestaltista percepção é
o mesmo que vida paraum biólogo. Não é que
não se defina e esteja presente em tudo, não é
que se explicite e com isso se situe, é que psicologia
é o estudo da percepção, tanto quanto biologia
o é da vida. Tanto a psicologia como a biologia sofreram
várias distorções provenientes do inatismo,
do determinismo mecanicista e elementarista. No caso da psicologia
vemos Freud falar de percepção como projeção,
na biologia não faltou quem defendesse a teoria do homúnculo
(miniatura do feto humano que se supunha existir no espermatozóide).
Perceber é conhecer pelos sentidos. Esta definição
clássica da psicologia da gestalt, surgiu como antítese
ao empirismo, à teoria da consciência como um mosaico
mental que dizia ser a percepção uma elaboração
dos dados imediatos recolhidos pelos sentidos (tato, olfato,
visão, audição e paladar). Quando Koffka,
Koehler e Wertheimer disseram que a percepção era
direta, imanente ao relacionamento com a realidade, eles estavam
negando a conceituação de percepção
como função superiora (tese da Escola de Graz),
eles estavam tirando as preexistências do ato perceptivo,
pois que já eram beneficados pela visão de Brentano
e Husserl, daí eles terem sido acusados de holistas, emergentistas,
pois a percepção ficava como uma mágica,
um clique. Em 1912, os estudos psicológicos estavam recém
saídos da psicofisiologia, da psicofísica (Wundt,
Weber, Fechner). A preocupação psicológica
consistia em determinar as diferenças individuais, através
da medida das diferenças dos limiares perceptivos. Pensava-se
em ciência como quantificação, exatidão,
medida. Ciência era o saber, era a autoridade que arrumava
o caos do mundo, do humano. Os gestaltistas achavam que o mundo
não era um caos, era um cosmos, que a organização
era imanente, intrínseca ao fenômeno. Eles acreditavam
que tinham que descrever, não precisavam introduzir categorias
(instinto, libido, Deus, inconsciente, mensurações)
para arrumar o mundo, arrumar o homem.
A conceituação de perceber como conhecer pelos
sentidos é perfeita enquanto antítese ao elementarismo,
entretanto não nos basta como explicação
do estruturante relacional; há um contextuamento semântico
que precisa ser limpo, mudado, a fim de não cairmos em
dualismos.
Então integramos que perceber é relacionar-se e
isto fica muito nítido se ao partir da conceituação
- perceber é conhecer pelos sentidos - neutralizando o
dualismo entre conhecer e sentidos vemos a maneira, o meio que
o homem tem de se efetivar como diferente do inanimado, das coisas:
é através da percepção. Ele se relaciona
com o mundo, com ele próprio e com o outro, tal não
o faz um caderno, uma porção de terra, o inanimado.
O que movimenta, dinamiza e constitui o humano é a percepção
do mundo, do outro, de si mesmo. Basta pensar em um ser humano
sem os cinco sentidos ou arbitrariamente deles privado - a retirada
do espaço e do tempo -, deixa apenas resíduos através
da memória e do pensamento fazendo com que o ser humano
se auto-mantenha dentro de certos limites. A percepção,
o estar em relação, faz com que o homem se situe
em um tempo e em um espaço.
Somos humanos, percebemos, vivemos em um tempo e em um espaço,
estamos no mundo. somos reais, existimos. No livro Psicoterapia
Gestaltista - Conceituações, de minha autoria,
existem abordagens sobre o que é o ser humano, fundamentais
para a compreensão das questões aqui enfocadas.
Imanente, próprio e constituinte de um ser humano é
estar em um tempo, estar em um espaço. Não vamos
dizer que estas interseções - tempo e espaço
- criam o homem, nem que este as origina. A aventura, a estabilização,
a tragédia, a alegria, a desgraça, o nirvana, a
comédia, o drama, a rotina, a realização,
a não realização do humano aí começa
- é o psicológico - a estruturação
da atitude humana sobrevivente ou existente, o homem enquanto
homem ou o homem como mais um objeto que ocupa um lugar no espaço
e no tempo.
Ao nascer, ao encontrar um tempo e um espaço, o ser humano
começa a desenvolver sua humanidade, começa a se
relacionar, isto é, a perceber.
Os gestaltistas, Koffka, Koehler e Wertheimer realizaram uma
série de estudos experimentais sobre percepção,
estabelecendo leis para o fenômeno perceptivo. Max Wertheimer
apresentou alguns princípios importantes de agrupamento,
de organização perceptiva. Demonstrou tais princípios
com desenh9os de pontos e linhas. Enunciaremos estes princípios
e faremos algumas transposições para as vivências,
para os relacionamentos humanos.
O princípio básico é de que "toda percepção
se dá em termos de figura e fundo"; percebemos o
elemento figural, o fundo nunca é percebido embora seja
estruturante contextual da percepção; existe sempre
uma reversibilidade entre figura e fundo. O que é figura
transforma-se em fundo e vice-versa. Algumas situações
possuem uma estrutura que possibilita, favorece esta reversibilidade,
outras que a dificultam, dada a pregnância do figural.
Exemplo: em uma página de um livro a percepção
das letras e do papel, do texto e do contexto. Outro exemplo:
percebendo a pintura indígena de uma tartaruga (figura),
vejo a casca de árvore onde ela foi pintada (fundo em
relação à percepção de tartaruga
e agora, quando percebido, figura). A tartaruga indígena
é figura que se transforma em pensamento, que como prolongamento
perceptivo passa a ser estruturante de percepção
- a arte dos índios, o massacre que eles sofreram, sua
dizimação. O dia em que comprei esta pintura. A
lembrança da loja, da conversa que mantive, as motivações
e vivências que tonalizavam aquele tempo. Enfim, a percepção
desta tartaruga aqui e agora comigo me remete a outros lugares,
outros tempos que se transformam em agora.
A não conceituação da percepção,
sua unilateralização ao ser explicada como projeção,
esta visão determinista, levou Freud a utilizar a associação
de idéias como maneira de explicar o percebido, o humano.
Fica fácil entender a distorção quando não
se dispõe de globalização, quando se dicotomiza,
fragmenta a realidade, postulando que ela é um símbolo
tradutor e captador de nossa realidade interna, de nosso inconsciente.
Este mecanismo foi terrível, porque através dele
se negou o mundo, que era considerado o externo e começou
a se pesquisar o subterrâneo, o inconsciente, partindo-se
assim a relação, a gestalt homem-no-mundo. Pensemos
nisso enquanto figura e fundo. O homem figura e mundo fundo e
vice-versa. Quantas percepções, quantas relações,
quantos conhecimentos sugem.
Agrupamento por proximidade: "Em condições
iguais, os estímulos em maior proximidade terão
maior possibilidade de serem agrupados". A proximidade pode
ser espacial, tal como no exemplo a seguir, ou pode ser temporal:
O agrupamento por proximidade é responsável
pela montagem de uma série de estereótipos, de
preconceitos, de clichês mentais. Exemplo: as páginas
policiais dos jornais estão cheias de notícias
sobre assaltos e crimes, via de regra cometidos por negros; suge
o estereótipo do negro como marginal. Não se percebe
a essência estruturante desta relação de
marginalidade que reside no fato da abolição da
escravidão ter sido assinada no papel sem consequente
profissionalização dos ex-escravos, decorrendo
disto sua integração à sociedade produtiva
como mão-de-obra explorada, oprimida.
Os judeus, após a guerra, tiveram que sobreviver fundamentalmente
através do comércio. Dentro de uma loja, ou o "homem
da prestação" - que vendia coisas de porta
em porta - sempre era um judeu; estabeleceu-se o estereótipo
que judeu só pensa em dinheiro - ele sempre estava vendendo.
Agrupamento por semelhança: "Em condições
iguais, os estímulos mais semelhantes entre si, terão
maior possibilidade de serem agrupados".
Através do agrupamento por semelhança,
verificamos, também, que é muito fácil explicar
os estereótipos, os preconceitos. Poderíamos mesmo
dizer que a psicologia social seria desenvolvida, escrita, ao
abordar estas leis. O dito comportamento de massas, o comportamento
popular, sempre unilateralizado pelas motivações
polarizantes, unidirecionais, bem explica isto: emoções,
agressividade em um campo de futebol, desvarios passionais diante
das copas do mundo, do desfile de escolas de samba, etc., decorrem
da percepção de o que não é igual
a mim, não é meu, não presta. O autoritarismo,
as discriminações, as parcializações,
aí também podem ser inseridas. "O que é
bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil",
é uma atitude típica: assemelhando-se ao rico,
fazendo o que ele faz, se é rico também, ou no
mínimo, se tem o seu apoio, o seu reconhecimento.
O agrupamento por semelhança leva também a insight,
a criatividade tipo se A=B e B=C, C=A. O semelhante é
sempre o outro; um outro, o duplo pode não ser o igual.
A não discriminação disto possibilita distorções,
anulações. No próprio relacionamento humano
às vezes percebemos o outro - meu semelhante - como meu
duplo, transformamos o diferente em igual, sem perceber que esta
igualdade já configura uma diferença, uma neutralização,
uma pontualização relacional.
Os ditos populares "não compre gato por lebre";
"não confunda alhos com bugalhos" comentam estes
princípios intrínsecos de organização
do fenômeno perceptivo.
Agrupamento por boa forma: "Os estimulos que formam
uma boa figura terão uma tendência para ser agrupados".
Esta apresentação é muito geral e pretende
abranger um certo número de variáveis mais específicas
deste tópico, tradicionalmente classificados da seguinte
maneira:
BOA CONTINUIDADE - "a tendência dos elementos p ara
acompanhar outros, de maneira a permitir a continuidade de uma
linha, de uma curva, de um movimento numa direção
já estabelecida".
Exemplo:
SIMETRIA - "a preferência pelo
agrupamento que leve a todos simétricos ou equilibrados
e não a todos assimétricos".
Exemplo:
FECHAMENTO OU CLOSURA - "o agrupamento
de elementos de maneira a constituir uma figura total mais fechada
ou mais completa".
Exemplo:
DESTINO COMUM - "a preferência
pelo agrupamento dos elementos que se movem ou se transformam
numa direção comum e, assim, se distinguem dos
que têm outras direções de movimento ou mudança
no campo. Consideramos que todas as percepções
que resultam dos determinantes acima são tais que satisfazem
ao critério de boa figura, boa forma, isto é, aquela
que é a mais contínua, a mais simétrica,
a mais fechada, a mais unifcada. "
Exemplo:
No auto-referenciamento o mais pregnante -
a boa forma - é o já conhecido, o que pode satisfazer
necessidades, o que dá prazer. O auto-referenciado percebe
o mundo e ao outro através de uma atitude hedonista: ele
foge da dor e busca o prazer (vemos aí as raízes
da idéia freudiana do Princípio do Prazer como
explicação básica do comportamento humano).
O mundo e o outro são avaliados em termos do que vai me
fazer bem e do que pode me fazer mal. Esta busca de bem estar,
este hedonismo leva o ser humano a sobreviver; a transcendência
passa a ser representada por frustrações, por fracassos
e por vitórias. É o que a psicologia elementarista
chama de emoção. A distorção é
muito grande, pois o que seria atitude passa a ser resíduo,
a priori. Nesta atitude de sobrevivência, a boa continuidade
- a tendência dos elementos para acompanhar outros, de
maneira a permitir a continuidade de uma linha, de uma curva,
de um movimento, numa direção já estabelecida
- pode ser entendida como o melhor caminho que leve à
satisfação de necessidades; é a avidez,
é a ganância.
SIMETRIA - "a preferência pelo agrupamento que leve
a todos simétricos ou equilibrados e não a todos
assimétricos" - pode ser traduzida pelo conhecido
egoísmo: "o que não está comigo, está
contra mim"; o que não me dá vantagem, não
me serve, não me é útil, tem que ser dcescartado,
destruído. Minorias desestabilizam os sistemas, sejamos
contra elas. Precisando de escravos, dependentes, não
se pode percebê-los como individualidades, é preciso
enquadrea-los em rótulos, categorias, classes - é
o filho, a mulher, o empregado, o homossexual - são os
neutralizados moral e economicamente pelo sistema social.
FECHAMENTO - "o agrupamento de unidades, situações,
de maneira a constituir uma figura total mais fechada, mais completa".
Exemplo:
Percebemos um triâng ulo, embora não
existam três ângulos. Fechamento ou closura é
um princípio de organização muito presente
nos processos criativos, tanto quanto nas distorções.
Arte, pintura e cinema, por excelência, muito a enfatizam.
Picasso recriou todo o espaço pictórico mergulhando
nas profundidades do fechamento, da closura (sobre o assunto
é interessante a leitura do livro Arte e Percepção
Visual de Rudolf Arnheim). A insinuação, o sutil
sendo figura, o implícito como pregnante é um dos
horizontes e constituintes relacionais do humano, é a
expressão que se apreende; Koffka diz: "antes da
criança se familiarizar com o seio materno ela apreende
o rosto, o sorriso de sua mãe". O olho no olho para
saber se as palavras são verdadeiras é uma closura
cotidiana que os seres humanos fazem.
DESTINO COMUM - "a preferência pelo agrupamento dos
elementos que se movem ou se transformam numa direção
comum e, assim, se distinguem dos que têm outras direções
de movimento ou mudança no campo". É própria
do denso, do enfático, não possibilita dúvidas.
podemos exemplificar com as participações, os movimentos,
os comentários, a publicidade, as induções
comportamentais.
O agrupamento por boa forma, pregnância, isto é,
aquela figura que é mais contínua, mais simétrica,
mais fechada, mais unificada, mais pregnante, a que se impõe
constituindo-se em referencial perceptivo, possibilitadora de
destaque, contornos, é responsável pela explicação
da percepção, estruturação e apropriação
do esquema corporal. Lacan, utilizando e distorcendo contribuições
de Merleau-Ponty e Henri Wallon sobre a percepção
de si mesmo na criança, teceu inúmeros bordados
linguísticos sobre a formação da imagem
especular (do espelho) sem conseguir atingir, globalizar a questão.
Estando no mundo com o outro, a criança o percebe desde
o início de sua existência. Esta percepção
de boa forma, pregnância, faz com que o outro seja percebido
e neste referencial é estruturada a percepção
do próprio corpo. Quando a criança chega ao espelho
ela se reconhece, confirma sua percepção, há
um insight: "eu sou igual a ele, a ela!" Por continuidade,
simetria, destino comum, fechamento - sem o espelho - a criança
viu sua mão, seu pé, sua perna e completou, fechou
a percepção do seu corpo através da simetria
encontrada no semelhante, no outro. Quebra-cabeças se
resolvem quando existe um modelo. Comportamento se explica quando
existem conceituações globalizantes unitárias.
Perceber é relacionar-se. Ao colocar estes princípios
e exemplos de percepção, estamos dando contextos
para os desenvolvimentos ulteriores que faremos neste trabalho,
daí utilizarmos exemplos, sem maiores aprofundamentos,
apenas para contextuar a questão.
Qualquer relacionamento, qualquer percepção, o
homem diante do novo, a criança diante do mundo, do outro,
é um contorno (no sentido de diferenciação
perceptiva). Desejos, motivações, presença-presente
que se mantém (boa forma) criando, distorcidamente, proximidade,
semelhança, destino comum, closura, simetria. No mínimo
este contorno individualiza eu e outro, à medida que me
mostra o que não é eu, seja o semelhante, seja
o diferente. Como resultante deste encontro perceptivo, deste
relacionamento, são estruturados referenciais, referências.
É aí que a psicologia elementarista fala do saber
inconsciente, do condicionamento e aprendizagem. Estes contornos
ou discriminações perceptivas criam um mundo, uma
realidade. Este processo também ocorre com os animais.
Eles aprendem à medida que apreendem, se relacionando
em um tempo e em um espaço.
O relacionamento - a percepção - estabelece contexto,
nuclealiza configurações e realidades que por sua
vez se constitui em posições, referenciais, acumulações
que são processos de crescimento, é memória
- dinâmica passada - é a estória, são
os laços, os apegos, os medos e participações
individuais. Passamos a ter limites (omissões-medos),
coisas a manter; passamos a ter aberturas (participações-determinações)
disponibilidade.
Através de sucessivas vivências,
percepções e relacionamentos, estruturamos necessidades;
através de sucessivas vivências de aberturas, participação,
determinação, disponibilidade, estruturamos possibilidades.
Este ponto do processo relacional (perceptivo) configura a vivência
do rela, do irreal. Real é o que eu percebo, irreal é
o que eu não percebo. Realidade é o que me situa.
Quanto mais aprisionantes, limitativos, desindividualizantes,
massificantes são os relacionamentos, mais a minha realidade
se estrutura em termos de ausências, vazios que por sua
vez vão estruturando meus desejos: suprir, preencher estas
lacunas, estas descontinuidades. Começamos a tampar incapacidades,
a sedar necessidades, a industrializar possibilidades. Conseguimos
unilateralizar vivências e estabelecer posições
a partir das quais percebemos o outro, o mundo e a mim. Ficamos
cheios de regras, normas e critérios úteis. Deixamos
de ser espontâneos, perdemos a curiosidade, a motivação.
Já estamos prontos e devemos manter ou mudar o que somos,
para continuar conseguindo o que nos falta, ou devemos manter
o que nos completa [3].
A vivência espontânea é real, fruto de um
encontro com o mundo, com o outro, comigo; é percepção,
é relacionamento, é ser-no-mundo-com-os-outros,
é disponibilidade que se dá enquanto abertura tanto
quanto limites. Não vamos cair em dicotomias valorativas
e dizer que o bom, o estruturante, o inteiro é o espontâneo;
estamos descrevendo um processo relacional, de como se estrutura
a vivência do real. O espontâneo, o estar disponível
e aberto para as coisas encontra regras, autoridades, culturas,
padrões, que limitam, ensinam o caminho ou então
o espontâneo, o estar disponível e aberto para as
coisas encontra o outro, o diálogo, o questionamento,
a participação, recebe dinamização,
espontaneidade que estrutura direções.
Crescemos dando continuidade à orientação
ou crescemos dando continuidade às condições
de nos orientar. Real é o que eu percebo, tanto em um
como em outro caso; entretanto, o real do estruturado em limites
é uma busca de realização de seus padrões,
enquanto que o real do estruturado em dinamização,
aberturas, é um encontro de novos relacionamentos, é
a descoberta constante de estar-no-mundo, independente de finalidades
e regras.
Perceber é relacionar-se, isto é contínuo
ou é quebrado, porisso a limitação, porisso
a dificuldade. É muito óbvio para o senso comum
e para a psicologia, sociologia e economia deterministas explicar
a limitação pela necessidade: a existência
dos outros, as lutas sociais, a exploração econômica,
o medo de ser, a repressão, a carência afetiva (conceito
psicanalítico), o destino. Em termos relacionais, descritivos,
achamos que o limite é o obstáculo, é o
acréscimo, em certo sentido é o que conseguimos
e queremos manter; em outro é o que nos impede de conseguir,
mas, mesmo aí, é o acréscimo; se ele é
limite em relação a X, é por ser apoio em
relação a Y (o ponto de apoio é o ponto
de opressão; patrão que explora é o mesmo
que alimenta; marido que causa insatisfação é
o que dá segurança; a imagem que tem de ser quebrada,
que limita é a que sustenta, é o pedestal, o respaldo
de autoridade, de poder).
Fica mais fácil repensar limitação como
falta de espontaneidade e repensar disponibilidade como espontaneidade
ou entender que limites estruturam atitudes de ter, conseguir,
vencer, realizar, cumprir, responsabilizar-se, orgulhar-se, manter,
defender, ajudar, lutar - o limite estrutura posições,
desumaniza. Não havendo limite, o que é estruturado
é a disponibilidade, a vivência do presente como
contextuamento de atitudes que até podem ser de luta,
realização, vitória, fracasso, etc., mas
sempre como resultante de vivências, nunca como a priori
ou metas. Limitados passamos a ser alto-falantes de sistemas:
família, cultura, religião, ciência, até
de verdades, e o pior, amealhamos resultados, adeptos, obrigações.
surgem as mágoas, os medos, as angústias. O outro
como limite é o acréscimo, é uma aderência.
O mundo - o real - é a ilusão; é o irreal
pois é estruturado em nossa limitação, nosso
aprisionamento - é o auto-referenciamento, a percepção
do outro e do mundo a partir de mim [4]. É como se transformássemos,
por autofagia, nossos dados relacionais, nossa percepção,
nosso conhecimento, nossos relacionamentos, nossas informações
em estofo para metas e projetos de vida. Equivalente disto aconteceu
com a psicologia limitada por referenciais mecanicistas, dualistas
e deterministas. Começou-se a colecionar observações
e experimentos sobre o comportamento humano a fim de criar categorias,
classificações das reações humanas,
criando até tipos humanos; introvertido, extrovertido,
ambigual.
Como ser diferente? Não acrescentando, não somando,
tendo autonomia, aceitando a realidade, sendo espontâneo
ao invés de programado para realizar, para adquirir. Não
é uma regra, um discurso exortativo, o que visamos é
uma descrição da dificuldade, das limitações
humanas. Estamos em uma sociedade massificada e sempre ao chegar
ao mundo o homem encontra limites, desde os ecológicos,
climáticos, até os da relação com
o outro. Que faz ele diante de tais limites? Não os aceitando,
tenta cortá-los, acrescenta-os ao seu espaço, ao
seu tempo, às suas vivências e tenta transcendê-los,
mudá-los - enfim se compromete, aprisiona-se. Se ele os
aceita, ele os neutraliza; eles deixam de ser obstáculos,
acréscimos e o homem se liberta, humaniza-se, aceita seus
limites: sua morte, sua vida, seus relacionamentos. Como exemplo
desta visualização passemos para o relacionamento
com o outro, desde que em termos psicológicos ele é
o grande limite, tanto quanto a grande transcendência,
libertação dohumano. [pags. 16 a 30]
NOTAS:
[1] - O tipo de questão que
nós colocamos pode também ser vivenciado através
do seguinte: o vento bate nas folhas e elas se movem. Estrutura,
circunstância, encontro, relacionamento. Batendo o vento
em uma pilastra não há movimento da mesma. Apesar
de sua estrutura, não havendo vento, as folhas não
se movem. Este encontro estrutural, circunstancial (acidente)
é que precisa ser globalizado, conceituado. Explicações
deterministas, psicanalistas ou do tipo junta a fome com a vontade
de comer são muito estigmáticas; o popular é
estigmático, é unilateral - apenas a necessidade
é levada em conta. Relacionamento humano é busca
ou encontro? Estar disponível ou à mercê?
Carência ou auto determinação? Despersonalização
ou individualidade? Eu preciso ou eu quero? Que é precisar?
Que é querer? A priori ou meta? O que é imanente?
O que é transcendente ao relacionamento? O que é
real e o que é ilusório no relacionamento humano?
O que é participação? O que é eu
com o outro no mundo? O que é neurose? No decorrer deste
livro responderemos estas questões.
[2] - No capítulo sobre disponibilidade (avaliação)
veremos como este conceito é fértil.
[3] - No livro Mudança e Psicoterapia Gestaltista - Zahar
Editores, Rio de Janeiro, 1977, da Autora, é conceituado
todo o processo de mudança e motivação do
humano.
[4] - Nos livros Psicoterapia Gestaltista - Conceituações,
edição da Autora, Rio de Janeiro, 1973 e Individualidade,
Questionamento e Psicoterapia Gestaltista, editora Alhambra,
Rio de Janeiro, 1983, o assunto é bastante desenvolvido
e configurado em suas implicações.
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