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Doença: Onipotência e Indisciplina
Vera Felicidade de Almeida Campos
Publicado no Boletim da SBEM, ANO
II nº5, outubro/dezembro 99, pag.57-59
Como seres no mundo, estruturados e estruturantes
de relações, estabelecemos limites e somos limitados
por nossos contextos relacionais explicitados através
de dimensões culturais. Criamos símbolos, linguagem,
consequentemente padrões morais, regras de convivência,
sociedade. Este processo de convivência implica necessariamente
em distanciamento de nosso ser, pois que ele foi transcendido,
transformado na relação com o outro.
O processo de transformação
do indivíduo, do ser humano, é também o
de sua estruturação enquanto individualidade, limitada
por necessidades orgânicas biológicas ou questionada
por possibilidades perceptivas, relacionais, psicológicas.
Em um resumo grosseiro, seria possível dizer: vive-se
para comer ou come-se para viver. Sobreviver ou existir.
Todo ser humano está sobrevivendo desde
que sua imanência é biológica. Esse processo
é cheio de dificuldades. O meio ambiente é hostil
(calor, frio, falta de comida etc); a sociedade impõe
suas regras hierarquizadas de come quem pode.
O dinheiro, o valor, permeia e desnaturaliza os processos naturais.
Luta para sobreviver, aprende, soma ajudas
ensinadas e sobrevive, vencendo etapas ou
falhando. As mortes prematuras indicadas pelas estatísticas
são reveladoras do esforço, da impossibilidade.
O processo natural, cru (a relação
do ser com o mundo) começa a ser cozido (1). Aproveitamos
os registros, as trajetórias de como se vence problemas.
Somos, treinados, civilizados, socializados. A escola é
uma guia, um farol que nos orienta do primário ao pós-doutorado,
aprendemos como fazer.
Contextuados no objetivo de resolver, comprometidos
com o resultado, nos decapitamos, nos estrangulamos, nos fragmentamos
neste processo de satisfazer necessidades para sobreviver. Perdemos
a cabeça. Padrões, mapas e regras decidem o caminho
que devemos trilhar. Não estruturamos autonomia, pois
que sempre temos de estar amparados e seguros pela baliza norteadora
de nossos propósitos e desejos, embora tenhamos arremedo
de autonomia dada pelo poder, pelo status.
Somos o que temos, o que conseguimos. Isto
nos realiza, nos adapta, mas nos esvazia. Ser constituido pela
aderência inicia a reificação (coisificação)
do ser. Neste contexto o significado é estabelecido pelos
valores, em última análise, pelos símbolos.
O símbolo à medida que representa uma realidade
a distorce, trai, pois que é usado em outro contexto que
não o de sua estruturação. Passamos a agir
e interagir pelos prolongamentos distorcidos. É a alienação,
perdemos o corpo. Nossos desejos e necessidades são manipulados
e condicionados pela busca de felicidade e de bem-estar. Neste
novo contexto, os resultados podem também ser confundidos
com grandes esperanças e ilusões.
Vivemos para e por. Perder o como, o presente,
é perder o único contexto humanizante, onde se
é, independente do que se tem, do que se faz. O desaparecimento
da vivência do presente cria os individuos despersonalizados,
que vivem em função de realizar seus sonhos e desejos,
seus olhos estão voltados para o além daqui, não-aceitam
limites que se interponham aos seus própositos e metas.
Quando o obstáculo, o limite surge, cria-se a vítima
desesperada que chora e se lamenta, negando a realidade limitadora
através da esperança de salvação;
ou aparece o intrépido, o obstinado lutador, que busca
resolver o limite.
Os limites são aceitos e integrados
por individualidades estruturadas, não fragmentadas. Individualidades
estruturadas não vivem em função de ter.
Aceitam o que acontece como o que está acontecendo. Não
buscam resultados, nem vivem voltadas para desejos, nem aguilhoadas
pelas frustrações de não realização
dos mesmos. Vivem o presente não têm ansiedade não
têm medo, angústia.
Estes comentários sobre ser e parecer,
aderência e imanência, são os contextos que
utilizaremos para entender o processo conhecido como doença.
Não vamos pensar em doença como
desequilíbrio, pois estaríamos presos ao postulado
reducionista, determinista de homeostase. Doença é
a criação de uma nova estrutura biológica-psicológica,
que se constitui em antítese responsável por perturbações,
mal-estares, dores, impossibilidades, mudanças, comprometimentos.
Surgem limites, perdas, dificuldades, incapacidades. Quando esse
limite é aceito, integra-se a doença; quando não
é aceito, estranheza, revolta e ilusão, caracterizam
a maneira de vivenciar a doença. Estes filtros (estranheza,
revolta e ilusão) estruturam uma atitude onipotente (não-aceitação
da impotência, do limite), indisciplinada.
A questão não é a doença,
não é o limite, o processo. A questão é
aceitação deste limite, deste processo. Toda vez
que um limite não é integrado, aceito, gera onipotência,
gera divisão, cria vazios. Existem pessoas "doentes"
por não serem altas, não serem magras e por não
serem ricas! A síndrome de pânico, a depressão,
nada mais é que a vivência de falha, de frustração,
de não ter conseguido o que queria, o que podia, o que
merecia, o que precisava, o que sonhava! Stress, angústia,
neurose, fobias, doença mental são tão explícitos
destes aspectos que dispõem de inúmeras teorias
e profissionais treinados para lidar e explicar estes estados.
É fundamental perceber a doença
como uma totalidade e não como um aspecto do ser. Não
se tem depressão, se é deprimido, não se
tem neurose, se é neurótico. Este enfoque é
possibilitador de apreensão da individualidade coisificada,
doente. Vale registrar que geralmente só se tenta globalizar
quando fica impossível somar, juntar dados. Perceber que
o todo não é a soma das partes se torna impossível
devido as conceituações elementaristas e reducionistas.
E as doenças irreversíveis,
a AIDS, a diabetes, certos estágios do câncer?
Lidar com a irreversibilidade é lidar
com a impotência; é o impossível, é
o inexorável. Como "curadores" percebemos o
inexorável, o irreversível como limites que se
trabalhados podem ser abrandados, mas precisamos que o "doente"
também perceba assim. Esta é a grande luta, vale
lembrar o artigo da Dra.Alcina Vinhaes Bittencourt "Porque
educar o diabético pode falhar": "Estão
os profissionais da área de saúde cientes da necessidade
de educar o diabético? O diabético pode então
estar bem informado e, ao mesmo tempo, ser incapaz de traduzir
essas informaçnoes ou de tomar decisões ante o
seu tratamento, porque estar informado não é igual
a atuar. Cria-se uma situação onde os pacientes-alunos
tornam-se adversários ou inimigos do profissional de saúde-professor.
O paciente torna-se submisso e/ou rebelde, e a equipe, por não
alcançar seus objetivos, sente-se impotente." (2)
Disciplina é a grande arma. O ser se
fragmenta exatamente por ter aberto mão da única
coisa absolutamente sua: possibilidade de estabelecer seus métodos,
suas rotinas, suas normas consoantes suas motivações,
possibilidades e necessidades. Estruturado segundo demandas circunstanciais
e padrões relacionais segue o que é bom, evita
o ruim.
Disciplina evita doença e disciplina
é uma anfitriã perfeita para receber esta visita
- a doença. Entretanto, só podemos nos disciplinar
se aceitarmos o que nos limita. Como pode uma criança
viver sem açúcar? Como pode lembrar a hora de tomar
os remédios? Como se afastar dos suculentos docinhos recheados,
se exatamente são eles que fazem esquecer a amarga realidade
da doença? E os obesos? E os soros positivos, como podem
abrir mão do prazer, abrir mão de contaminar, se
já estão se sentindo à beira do túmulo?
Vingança, inveja, raiva, medo. Este é o colorido
psicológico que mascara uma simples questão: não
aceitação do limite. Aceitar a doença, o
limite, é aceitar a vida, é aceitar a morte. Como
humanos, não somos imortais, mas somos seres com infinitas
possibilidades; não há porque se restringir ao
círculo limitado das contigências biológicas,
é necessário transcendê-lo, só assim
os limites são integrados, aceitos e transformados. A
doença deixa de ser um estado vitimizante, virando um
processo humanizador. Não é raro, sabermos de muitos
casos em que depois de doenças graves, ou de doenças
crônicas as pessoas percebem o universo, entendem o proque
de terem vivido, de estarem vivas, conseguindo transformar a
doença em ensinamento, superação em seu
duplo sentido.
Havendo problema existe necessariamente solução;
basta mergulhar nos dados do problema e evitar os caminhos de
solução que nada têm com as estruturas da
problemática. Mergulhando no problema conseguimos resolvê-lo,
dedicados à doença conseguimos deixar de senti-la
como uma aderência, um castigo. Passamos a perceber a nova
realidade limitada e estabelecemos métodos, disciplinas
de convivência, que com certeza se não trouxer cura,
trará nova maneira de lidar com impasses, nos fará
aceitar a impotência disciplinadamente e isto é
libertador - perdemos os medos e as metas. Lembro o mito de Sisifo
eterno e presente. Vale à pena revê-lo: Sisifo foi
condenado, em castigo à sua desobediência e onipotência
por querer libertar Prometeu da cólera dos Deuses, a levar
uma imensa pedra até ao alto de uma montanha. Após
muitos esforços Sisifo realiza seu trabalho e para seu
desespero Zeus chuta a pedra, dizendo que ele, Sisifo, a tem
de carregar novamente até o alto da montanha. Após
inúmeros levar e pedra rolar abaixo, Sisifo tem um insight,
percebe que o castigo não é levar até o
alto: é levar ao alto, pedra ser rolada para baixo e levar
de novo, infinitamente. Neste momento de compreensão,
Sisifo se liberta, perde a meta de por fim à seu castigo,
aceita sua realidade, não mais sendo castigado. É
o homem livre dos deuses, é o absoluto senhor de sua vivência.
Liberta-se do castigo e dos deuses. Levar a pedra é sua
tarefa, seu trabalho.
Notas:
(1) - Claude Lévi-Strauss, "Le
Cru et le Cuit", Librairie Plon, Paris, 1964
(2) - "Por que educar o diabético pode falhar",
publicado no Boletim da SBEM, ANOI, nº3, abril/junho 99,
pag.31
Vera Felicidade de Almeida Campos é psicoterapeuta, criadora da Psicoterapia
Gestaltista, desenvolvida e exposta nos seus cinco livros: Psicoterapia
Gestaltista-conceituações, Edição
da Autora, Rio de Janeiro, 1973; Mudança e Psicoterapia
Gestaltista, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1978; Individalidade,
Questionamento e Psicoterapia Gestaltista, Alhambra, Rio
de Janeiro, 1983; Relacionamento Trajetória do Humano,
Edição da Autora, Salvador, 1988; Terra e Ouro
são Iguais-percepção em psicoterapia gestaltista,
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1993
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