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Vergonha e Síndrome de Pânico
Vera Felicidade de Almeida Campos
Publicado no Boletim do SBEM, outubro/dezembro
2000, pag.37-38
A vergonha é um sentimento social,
dizia Lévi-Strauss.
É a não aceitação
decorrente do processo psicológico de ser pegado em flagrante
fora dos padrões aceitos e valorizados, pensamos nós.
A presença do outro, insinuada enquanto testemunho, fiscal,
juiz, avaliador é determinante do sentir vergonha. As
pessoas não sentem vergonha por estarem fora dos padrões,
elas sentem vegonha quando ocorre o flagrante. A estruturação
da vivência de vergonha vai depender dos processos relacionais,
de seus contextos. A vergonha pode ser estruturada no nível
corporal, no social e no existencial.
O corpo é um grande estruturante de
vergonha, pois existem vários padrões éticos
e estéticos determinando como ele deve ser, como deve
aparecer, o que deve esconder etc. Desde Adão e Eva, conforme
nos conta a Bíblia, escondemos "nossas vergonhas".
A folha de parreira quando cai causa vergonha pelo que é
mostrado. A idéia de que a nudez tinha que ser escondida
era tão forte, que a palavra vergonha também significava,
era sinônima de genitália.
Ficar nú é vergonhoso, é
o estar desprotegido, exposto. Atualmente, quando o corpo é
uma mercadoria, um produto de consumo, exibí-lo causa
prazer, causa orgulho. Envergonhador é o corpo fora dos
padrões "malhado", "sarado", jovem.
O corpo é escondido ou exibido em função
dos padrões do que é aceitável, do que é
estigmatizante. Além da nudez, outro fator gerador do
sentimento de vergonha do corpo é a gordura ou magreza
excessivas. A magreza pode denunciar a falta de dinheiro, a impossibilidade
de comer ou a doença que se desenvolve (câncer,
AIDS, diabetes, por exemplo). Estar gordo, via de regra, é
estar afastado da convivência com os outros, é criar
barreiras aos relacionamentos. Tudo é impossibilitador:
para ir a um cinema, para ir a um bar tem que pensar se "a
cadeira é grande". A gordura exibe também
a gula, a ansiedade, o descontrole, a falta de disciplina e determinação,
desde quando o sistema já oferece mil maneiras de não
engordar.
Vários endocrinologistas relatam que
seus pacientes obesos frequentemente mentem, negam ter comido
doces, ter comido quantidades maiores. As mentiras existem para
esconder o descontrole, a gula, que envergonham. O circulo vicioso
se instala: não se aceita, desloca para comida, engorda,
busca o tratamento, mas não pode admitir a causa do problema,
então mente para manter o conseguido. Em certos casos,
o engordar é uma maneira de ser livre, poder fazer o que
quer. Essa motivação, não explicitada -
"quem manda em mim sou eu", "sei o que fazer da
minha vida", por exemplo - cria comprometimentos responsáveis
pela mentira.
Contextualizada ainda no corpo, temos a vergonha
da cicatriz, do estar doente, do estar impedido. Quanto mais
estigmatizada a doença, maior a vergonha. Através
da vergonha procuramos neutralizar toda e qualquer situação
que nos deixaria marginalizados, excluídos da convivência
com o outro, por isso a vergonha é um sentimento fundamentalmente
social, como dizia Lévi-Strauss.
Estruturada no contexto social, a vergonha
existe quando os padrões valorizados não são
atingidos: ser pobre, morar no subúrbio, não poder
comer no McDonald, infelicitam. Não saber usar corretamente
os talheres, desconhecer as safras e nomes de vinho são
também desencadeantes de vergonha, sempre acompanhados
do sentimento de inferioridade. As roupas inadequadas, os conhecimentos
defasados, a ignorância, também envergonham. A vergonha
sempre muda, à medida que os padrões mudam. Ser
mãe solteira, ter os pais separados eram situações
frequentemente geradoras de vergonha até as décadas
de 50, 60. Hoje significam liberdade, escolha.
No contexto existencial, no nível do
ser, das possibilidades de relacionamento, o sentimento de vergonha
surge quando a inautenticidade é constatada. É
a mentira, o despiste, a falsa ideologia. Esconder opções
sexuais não aceitas, ser homossexual, por exemplo, e fazer
de conta que não é, gera uma constante sensação
de ameaça, medo, desencadeadora de vergonha. A vergonha
surge quando são abaladas as construções
feitas para ocultar a origem não aceita, esconder o pai
ladrão, ocultar o filho gay, negar a filha toxicômana.
A falência econômica, a quebra da imagem mantida,
o se ver sem saída, também causam vergonha às
vezes responsável pelo suicídio.
A vergonha está muito próxima
do medo e da depressão. A omissão, o medo, o esconder,
são artifícios usados para proteger. Quanto maior
o medo, maior a vergonha. O medo é a barreira que ao proteger,
também imobiliza, esvazia. Amedrontado, sempre com medo
do que vai acontecer, temendo desmascaramento, o ser humano começa
a evitar a vida, o relacionamento, começando assim a construir
a depressão.
Medo, vazio, vergonha, depressão e
culpa são os estruturantes da conhecida síndrome
de pânico. Evitando sair, evitando falar, evitando tudo,
aos poucos criam-se impossibilidades, situações
de impasse, de tensão. É o pânico com seus
sintomas: suor frio, tonturas, vômitos etc.
A vergonha é um sintoma de não
aceitação da não aceitação.
Não aceitando ser o que se é, cria-se uma máscara,
uma aparência transformadora do ser em parecer. Este parecer
é a aparência, a máscara. Não pode
ser tocada, enfim não pode existir, apenas representar,
indicar, esconder. Qualquer contato com a realidade será
demolidor, por isso não se pode ir à rua, não
se pode falar em público etc. Monta-se o cenário
para a síndrome de pânico, escamoteando-se assim
toda a vergonha estruturada pela não aceitação
de si, da realidade, dos limites.
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