Análise do mês:

O esforço mundial contra a pobreza e a agenda Brasil

por Eduardo Dutra Aydos

     Ao promover, em solenidade no Palácio do Planalto na terça-feira 20/02, ações do Projeto Alvorada em 60 municípios brasileiros, o Presidente Fernando Henrique Cardoso obteve algumas linhas de destaque da imprensa, mescladas e obscurecidas pelas manchetes e o destaque dado à sua eventual resposta ao discurso de Antonio Carlos Magalhães no Senado Federal, quando reiterou seu horror corrupção. O que ressalta nesse episódio é o descompasso, entre o esforço inédito do Governo Federal, lançado em julho do ano passado, que investirá 13.2 bilhões de reais nos 2.318 municípios de mais baixo índice de desenvolvimento humano, e o espaço de mídia que lhe tem sido dedicado. Maior ainda essa disparidade, quando sopesados os resultados palpáveis da ação governamental, a austeridade da sua promoção e modesta ressonância nos meios de comunicação, com o latifúndio midiático e os dividendos político-partidários de um evento tão intangível nos seus resultados e contraditório nas suas propostas, como Fórum Social Mundial que se realizou em Porto Alegre, em janeiro deste ano.

     A um observador atento, não passou desapercebido que a solenidade no Palácio do Planalto realça a disposição proativa do governo federal - diga-se de passagem, reiteradamente acusado de promover a barbárie social  neste país e, não obstante sumariamente excluído nos debates do Fórum Social Mundial, portanto, sem direito a defesa.  Lançou-se um repto, pela austeridade no tratamento do tema e pela concretude das iniciativas, ao clima de irresponsabilidade política que pautou o monolitismo ideológico e o direcionamento partidário do "happening" Januário de Porto Alegre.

     Para avançar neste contraponto, entretanto, será necessário resgatar-se um sentido ao esforço global do desenvolvimento humano e sustentável, que a promoção e a avaliação do Fórum Social Mundial, pelo oficialismo municipal e estadual, de alguma forma, sonegou à opinião pública.

     Vendido aos menos avisados, como o momento zero da luta por um mundo novo possível, o Fórum Social Mundial omitiu à consciência histórica dos seus participantes e espectadores, as dimensões de um terreno já desbravado, na mesma direção de enfrentamento às desigualdades e à exclusão, pela iniciativa do multilateralismo responsável, que se afirmou no ciclo social de conferências da ONU (Cúpula da Criança, Nova Iorque, 1990; Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992; II Conferência de Direitos Humanos, Viena, 1993; População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; Desenvolvimento Social, Copenhague, 1995; II Conferência Mundial sobre a Mulher, Beijing, 1995; Assentamentos Humanos – Habitat II, Istambul, 1996; Segurança Alimentar, Roma, 1997). Calou também, sobre os compromissos assumidos pelo governo federal e o Estado brasileiro naquelas conferências internacionais, e sobre as iniciativas e resultados avançados na sua implementação. Note-se bem, que o menosprezo da participação brasileira neste esforço global, faz pouco caso de políticas sociais adotadas em escala nacional, cuja efetividade é hoje monitorada por organizações autônomas da sociedade civil, algumas das quais, inclusive, organizadoras do evento de Porto Alegre.

     Ao se visualizarem as dimensões efetivas de intervenção política, que resultaram na estruturação do Conselho da Comunidade Solidária e amadureceram na estratégia de desenvolvimento local integrado e sustentável (DLIS), como diretriz das ações governamentais no combate à miséria absoluta, e na prioridade dos investimentos na educação fundamental, como fundação no nosso futuro, salienta ainda mais o desconcerto do Fórum Social Mundial. O elogio da barbarie, pela agressão à ciência e até mesmo pela impunidade dos maus costumes - como invadir um restaurante e cuspir no prato dos outros - foi realçado pelo vestuário exótico das figuras humanas, pelo colorido dos acampamentos, pela curtição das recepções palacianas aos líderes festejados de um mimetismo ideológico que nos impingiu, como os grandes alvos da luta contra a pobreza, uma estação de pesquisa de alimentos e um estabelecimento de comida rápida e barata. Tudo isso é óbvio, devidamente empacotado e despachado, com as diárias e passagens que o erário brindou aos mais autênticos e produtivos participantes do evento, subsidiando os espetáculos de som e imagem que rolaram nos embalos das noites de janeiro.

       No específico do tema proposto - tanto quanto pude acompanhar o desenrolar dos debates, à distância prudencial que me impus, em face da pouca transparência das intenções e ao atrelamento partidário na organização desse evento - nenhuma proposta, efetivamente nova e original de intervenção social, emergiu à esfera palpável das decisões políticas, nas quatrocentas ou mais reuniões de trabalho do Fórum Social Mundial. A Taxa Tobin, lançada pelo prêmio nobel de economia do mesmo nome, em outro momento e contexto, não foi nem uma novidade e nem uma exclusividade do Fórum Social Mundial. De sorte que, nem mesmo na sua pretensão de regular o capital especulativo, o evento de Porto Alegre conseguiu estabelecer um contraponto significativo ao Fórum de Davos, onde a Taxa Tobin também esteve na pauta de discussões, obtevendo significativo apoio, inclusive por parte do mega-especulador Georges Soros. O perdão da dívida aos países pobres, por sua vez, é uma proposta anciã de quase vinte anos - e já parcialmente consensualizada e executada, até mesmo pelo Brasil, que já cancelou a dívida pública do governo de Moçambique. E, finalmente, a reprodução mundial do protesto anti-neoliberal e o seu agendamento à margem das conferências multilaterais que terão lugar neste primeiro ano do novo século, que aparece como o eixo aglutinador à continuidade e ampliação do Fórum Social Mundial, merece um comentário a parte.

     "Porto Alegre convoca para as mobilizações" é o título do documento que registra o racha  entre as ONGs democráticas que, de alguma forma, participaram na realização do Fórum, e o sectarismo organizado e ideologicamente atrelado que hegemonizou a sua implementação. Firmado, na melhor tradição de um aparelhismo político surrado de guerra - que prima pelo velho costume de coligir um número maior de siglas nas declarações e no suporte das suas propostas, do que participantes nos próprios debates do seu conteúdo - o chamamento à ação contido neste documento corre o risco de emular, simplesmente, uma unidade fictícia de contrários. Há que se esclarecer formalmente a opinião pública, das razões por que nem todas as ONGs que participaram na organização do evento assinaram este documento. Entrementes, a resposta parece óbvia e ululante: na esteira dessa convocatória, pratica-se o despautério de nos tentar impingir: o aplauso aos agricultores do primeiro mundo que protestam contra a importação dos nossos produtos primários; o suporte aos operários americanos e europeus que protestam contra a importação dos nossos produtos industrializados; ou ainda, a conivência a toda sorte de interesses que, sob a capa das consignas ecologistas mais respeitáveis, propugnam a internacionalização da amazônia.

       No concreto da produção intelectual gerada, pelas ditas quatrocentas e mais oficinas do Fórum Social Mundial, a responsabilidade de uma avaliação genérica, corre o risco de fazer injustiça a pessoas e instituições sérias que acorreram de boa vontade à sua convocatória. Não obstante, e com o devido respeito a esses casos particulares, é necessário ousar o enfrentamento aos múltiplos equívocos e ao resultado contraproducente que, de alguma forma, a sua participação sacramentou. Tenho para mim, num balanço geral do que me foi dado conhecer, que qualquer encontro, oficial ou oficioso, da academia de ciências sociais no Brasil - desses que são financiados pelos recursos, infelizmente escassos, do Ministério da Educação, em proporções de investimento público dezenas de vezes inferiores, e que a comunidade acadêmica disputa centavo a centavo via CAPES ou CNPQ - tem sido mais sério, conseqüente e produtivo no plano das idéias, propostas e projetos, do que o repeteco de teses acadêmicas superadas e de manifestos insuscetíveis de merecer credibilidade política, que proliferaram no "happening" Januário de Porto Alegre.

     Num fórum de debates que, em solo nacional, pretendeu avaliar o estado planetário da luta contra a pobreza e a fome mundial, para dizer o mínimo, é vergonhosa a omissão dos resultados alcançados pelo Brasil, numa década de lutas para assegurar-se, em meio às transformações e crises da economia global, patamares de desenvolvimento humano e sustentado, compatíveis com as metas sociais globais das Nações Unidas. Muito mais, quando isso contrasta com a fragilidade das experiências e o contraditório de depoimentos que, alternativamente, nos foram oferecidos - por exemplo, o elogio de Cuba, como um país socialmente justo. Obviamente, esse destaque serviu apenas para obscurecer o fato social gritante, que a Ilha de Fidel – em recente inventário da FAO: O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo: 1999 – comparece como uma das campeãs globais do retrocesso na luta contra a pobreza e a desnutrição. É o país latino-americano que registrou, em termos percentuais, a maior taxa de crescimento da pobreza e da fome no período estudado, que atinge de 3% da sua população em 1990/2, passando para 19% em 1995/7. Enquanto isso, no mesmo período o Brasil – que o pessoal do Fórum estigmatiza como o campeão mundial da desigualdade social e da barbárie capitalista – reduziu, a incidência de desnutrição da sua população de 13% para 10%.

     Estudo recente da agenda social no Brasil, elaborado por Edélcio Vigna de Oliveira, sob os auspícios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD/Brasil e da ONG Instituto de Política, com base em dados do Observatório Social do IBASE (entidade-membro do Comitê Organizador do FSM), destacou onze compromissos internacionais do governo brasileiro na luta contra a pobreza, na esmagadora maioria dos quais, a despeito das dificuldades econômicas enfrentadas pelo país, registram-se progressos consideráveis, a saber: (1) universalização da educação básica às crianças em idade escolar: 88% em 1990, 90% em 1995 e 97% atendidos em 1998; (2) expectativa de vida de 60 anos no ano 2.000: meta superada em 1990 (com 64,8 anos) e ainda em progresso (atingindo 67 anos em 1996); (3) redução da mortalidade infantil para 50 em cada 1.000 nascidos: meta atingida passando-se de 58 em 1990, para 44 em 1996 e 43 em 1998; (4) níveis de segurança alimentar correspondentes a 3.000 calorias no ano 2.000: 2.745 calorias em 1990, 2.938 em 1996 e 2.844 em 1998; (5) redução à metade da desnutrição grave e moderada dos menores de cinco anos: 7,1% em 1990, 6% em 1996, e 4,3% em 1998; (6) universalização dos serviços de saúde reprodutiva: 73% em 1990, 88% em 1996 e 93,9% em 1998; (7) redução à metade do analfabetismo de adultos: 18,9% em 1990, 17% em 1995, e 11% em 1998; (8) universalização do saneamento básico: 73,3% em 1990, 94% em 1998; (9) universalização do acesso à água potável: 89% em 1990, 92% em 1995 e 97,7% em 1998. (10) erradicação ou controle das doenças imunizáveis: verificando-se algum retrocesso no campo da tuberculose e do sarampo, e uma progressão modesta no campo da vacinação tríplice (difteria, coqueluche e tétano) e antipólio; (11) redução em pelo menos 20% na incidência de malária: meta que não registra progressão nos dados de 1998.

     A progressão alcançada na quase totalidade destes indicadores credencia o Brasil em âmbito internacional, não apenas como um dos 37 países em desenvolvimento onde a luta contra a fome obteve ganhos reais (contra 59 onde o desenvolvimento social estagnou ou regrediu) no período entre 1991 e 1996. Mais do que isso, como um país capaz de assumir compromissos e realizar metas no esforço mundial da guerra contra a pobreza absoluta.

     Relatório da força-tarefa independente do Council on Foreign Relations, integrado por influentes acadêmicos e lideranças empresariais nos EUA, recentemente divulgado, recomenda ao Presidente George Bush uma interlocução privilegiada ao nosso país, identificado como fulcro do sucesso de quaisquer iniciativas americanas na América do Sul e como um parceiro essencial na sustentação da reforma econômica e da democracia. Entre os argumentos alinhavados para justificar essa condição, aquela força-tarefa constatou que o Brasil é a terceira maior democracia do mundo, e que no front econômico: verbis - "Brasil é uma das grandes potências econômicas e um líder entre os mercados emergentes avançados. A economia do Brasil é duas vezes maior que a da Rússia, quase tão grande quanto a da China e duas vezes superior à da ìndia. Brasil é o principal interlocutor na América do Sul, com metade do seu PIB e da sua população." Mais ainda do que isso, os estudos comparativos do desenvolvimento humano e sustentável no mundo, nos equiparam em qualidade de vida, e com  vantagens, nos indicadores sociais destas nações emergentes do Século XX.

    Essa condição, agora enfaticamente declarada, formaliza o que já vem sendo amplamente reconhecido no plano internacional, não obstante a persistência doméstica de um mal estar do século, que nos persegue de um arraigado sentimento de inferioridade e catastrofismo. De fato, conseguimos alcançar hoje a rara credibilidade de uma nação em desenvolvimento econômica e socialmente governável – ou seja, capaz de definir um rumo e de percorre-lo na construção do seu futuro. Implementamos com sucesso um programa de estabilização econômico-financeira, que nos assegura as possibilidades de uma inserção soberana na nova ordem mundial. Implementamos um programa massivo de reforma agrária, recentemente reconhecido pela ONU como o mais extenso e bem sucedido na segunda metade do século XX. Avançamos a luta contra a desnutrição, universalizando, com recursos do governo federal e parcerias municipais, a merenda escolar na rede pública; e nos aprestamos em realizar as metas do Plano Nacional de Educação que prevê a universalização da educação básica e significativa elevação dos níveis de escolarização média. Nacionalizamos, neste sentido, a experiência bem sucedida da administração petista do Distrito Federal na concessão da bolsa-escola – sem desconhecer a origem dessa iniciativa e sem a necessidade infantil, tão cara à nossa provinciana militância de esquerda, de mudar o nome da coisa, como se isso fosse uma solução. Bem ao contrário, aliás, do que se pratica nos arraiais do sectarismo organizado, onde, por exemplo, por obra de uma característica manipulação semântica, os assentamentos de reforma agrária do Incra, com terra, financiamento e assistência técnica fornecidos pelo governo federal, uma vez estabilizada a sua condição de posse e a estrutura cooperativa de sua produção, passam a tornar-se conhecidos, e a contabilizar para todos os efeitos externos, a condição de assentamentos do MST.

    O mais importante em tudo isso, é que avançamos essa condição em liberdade, aprofundando e radicalizando uma experiência institucional que nos confere a condição privilegiada e competitiva de terceira maior democracia no mundo. E chegamos neste patamar invejável, no concerto das nações, sem termos passado pelos traumas indeléveis das gerações sacrificadas em guerras civis, revolucionárias ou religiosas, mas de qualquer forma fratricidas; sem o flagelo econômico-social das grandes fomes genocidas do século XX que eclodiram na África e Ásia descolonizadas e na duas maiores economias socialista, União Soviética e China; e, sem abrirmos mãos da liberdade, como um objetivo nacional permanente, como também ocorreu em Cuba, Rússia e China, nas nações satélites do socialismo de Estado na Europa Oriental e num grande número de nações emergentes das guerras anticolonialistas. Destoamos, para felicidade nossa, da saga dolorosa destas nações, onde o marxismo ajustou-se aos mais retrógrados e sanguinários padrões de autoritarismo tribal, militarismo modernizante e fundamentalismo religioso. Temos a oferecer, neste sentido – com todos os percalços do caminho percorrido e um ainda enorme saldo de expectativas frustradas nos prospectos da inclusão social – muito mais qualidade humana na experiência que amealhamos e no cotidiano da nossa vida, do que nos oferece o receituário político e o imaginário sociológico do conservadorismo da esquerda, que emulou os protestos e os embalos do grande "happening" Januário de Porto Alegre.

    Só mesmo a imaturidade de uns, temperada pela irresponsabilidade de outros, na misturança geral do sectarismo de muitos, poderia transformar a idéia de um debate sobre a agenda social global – destinado a contribuir com soluções e alternativas para a erradicação da pobreza absoluta – no cadinho de auto-comiseração e ressentimento, da tragicomédia exótica em que naufragou o Fórum de Porto Alegre.

     Vimos o Bovê – num Estado agropecuário, como o nosso Rio Grande, cuja produção é discriminada nos mercados europeus sob pressão da entidade que lidera – sentir-se, não obstante, tão à vontade neste quintal ultramarino que aprontou, bem debaixo das nossas barbas (ou melhor, do nosso bigode), o que ele não se arrisca mais a fazer na sua própria pátria, ou seja, na França das tradições libertárias para exportação e das práticas autoritárias, racistas e protecionistas, para consumo interno. Testemunhamos a impunidade do gaulês cachimbeiro, na conveniência de um tratamento policial-judiciário a luvas de pelica, que lhe assegurou o trânsito, do palácio à suíte subsidiada pelo erário, e todas as prerrogativas para vir e ir-se desta província sob o assédio permanente da imprensa. Isso que, não obstante, não lhe coibiu a petulância de estigmatizar-nos o privilégio recebido, com a retumbante acusação de selvageria. E, ao depois de sua partida, quando já tudo parecia enterrado, na vala comum de um esquecimento obsequioso, acudimos ainda em sua defesa um providencial atestado de bons antecedentes, no testemunho abonatório dos elevados interesses humanitários, que o teriam movido ao gesto heróico e pungente da agressão sorridente aos vegetais de uma estação de pesquisa científica... tanto lá como aqui. Investimos nisso tudo, desvairadamente, o bem mais precioso da autoridade, que reveste a representação política numa democracia.

     Obviamente, tudo isso tende a nos projetar muito rápido onde não poderíamos deixar de nos encontrar nos dias que passam: no fundo do poço, de uma condição culturalmente fragilizada enquanto Nação, que nos desarma de argumentos e de credibilidade para nos contrapormos à globalização desigual, que nos pressiona a aceitar os interesses entrincheirados nos países industrializados - como a França e o Canadá... que nos exportam ideologias, mas, para se esquivarem de nos importar produtos, serviços ou mesmo tecnologias. Do atentado consentido à estação de pesquisas biogenéticas em Não-Me-Toque, ao estelionato comercial da doença da vaca louca, perpetrado pelo governo canadense, não transcorreu mais do que um instante de lucidez perversa, engendrado, com toda a certeza, no clima dessa combinação esdrúxula entre a permissividade à delinqüência, que pintou no rebote do grande "happening" de Porto Alegre, e a vontade de desforra a qualquer preço, que nos brindou com a hostilidade de uma nação concorrente na produção de aeronaves. A uns e a outros – à descompostura dos de dentro, que promoveram o deboche das nossas instituições, e à desfaçatez dos de fora, que navegaram o seu ultraje na onda dessa irresponsabilidade consentida – esta Nação, que já alcança a sua maturidade, já encontra os meios de responder-lhes no devido tempo e lugar.

    No momento, entretanto, impõe-se tirar dos fatos as suas conseqüências, até mesmo porque o evento "Fórum Social Mundial" – como espetáculo e como oportunidade de reflexão cidadã – haverá de repetir-se e não contribui para a democracia consentir-se na sagração de um partido tutelar (coincidentemente nomeado pela sigla PT), como o estuário privilegiado dos seus dividendos políticos e, muito menos, no atrelamento da sua organização futura aos acordes de uma ideologia orientada à desconstrução do presente, pelo elogio e a estratégia da violência.

     A emulação das FARC, do ETA, dos Exércitos de Libertação Nacional, simbolizados na figura de Ahmed Ben Bella, ditador argelino destronado e antidemocrata declarado, para quem a democracia é inviável no capitalismo e a revolução armada é a única alternativa para a construção de um mundo novo, deu a tônica ao painel temático do Fórum Social Mundial sobre os fundamentos da democracia e de um novo poder. O paradoxo dessa dissonância flagrante, semântica e cognitiva, consentida e promovida neste evento, tem um sentido muito próprio e conseqüente: o obscurecimento de tudo que lhe é anterior e a inauguração de uma polaridade essencial que, a partir do toque fundacional da sua liderança, estabelece um divisor de águas entre os excluídos e os incluídos, entre os puros e os impuros, entre os autorizados e os desautorizados representantes de um homem novo, parido pelo esquecimento dos tempos e despertado em terra arrasada pela ruptura dos códigos, pela renomeação das coisas e pela exaltação da própria violência como instrumento essencial dessa construção. Na sua conseqüência, excesso é normalidade, exceção é regra, morte é vida, mentira é verdade, ódio é amor, crime é valor na construção da comunidade ou da Nação, da solidariedade ou da cidadania, que emergem na história pela eliminação física das diferenças entre os homens – onde, obviamente, se pretende que os mortos sejam os incluídos da velha ordem e que os sobreviventes sejam os excluídos de todos os tempos... ora protagonistas da sua execução numa guerra sem quartel. Reconhecem-se na solidariedade que os une, contra o inimigo que elegem, combatentes de uma nova humanidade, que se apregoa a despeito de tudo o que destrói na sua esteira e do próprio trauma dessa destruição, que carrega para o seu futuro, de melhor qualidade.

     Ninguém mais autorizado, para representar essa concepção equivocada de mundo e os seus reflexos na autojustificação da bestialidade humana, do que Jean Paul Sartre prefaciando "Os Condenados da Terra", de Frantz Fanon, sobre a guerra da independência na Argélia: "Essa violência irreprimível, ele o demonstra cabalmente, não é uma tempestade absurda nem a ressurreição de instintos selvagens e nem mesmo um efeito do ressentimento; é o próprio homem que se recompõe. Sabíamos, creio eu, e esquecemos essa verdade: nenhuma suavidade apagará as marcas da violência; só a violência é que pode destruí-las. E o colonizado se cura da neurose colonial passando o colono pelas armas. Quando sua raiva explode, ele encontra a sua transparência perdida e se conhece na medida mesma em que se faz; de longe consideramos a guerra o triunfo da barbárie; mas ela procede por si mesma a emancipação progressiva do combatente, liquidando nele e fora dele, gradualmente, as trevas coloniais. Uma vez iniciada, é impiedosa. É necessário permanecer aterrorizado, ou tornar-se terrível, quer dizer: abandonar-se às dissociações de uma vida falsificada ou conquistar a unidade natal. Quando os camponeses tocam nos fuzis, os velhos mitos empalidecem, e caem por terra, uma a uma, as interdições. A arma do combatente é a sua humanidade. Porque no primeiro tempo da revolta, é preciso matar; abater um europeu é matar dois coelhos de uma só cajadada, é suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: restam um homem morto e um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a planta dos pés. Neste instante a Nação não se afasta dele; ele a encontra aonde for, onde estiver – nunca mais longe, ela se confunde com a sua liberdade."(Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1961, p. 14).

     No espelho dessa concepção de mundo, muitos dos promotores do Fórum Social Mundial poderão reconhecer-se – embora talvez os surpreenda o contraste aguçado do próprio retrato. Faz sentido, neste contexto, o comportamento permissivo do poder de polícia, em face da agressão política e social (como aconteceu na ascensão do nazismo e do fascismo, e como reproduziu-se no atentado ao relógio da Globo ou à plantação da Monsanto), e a justificação da criminalidade mediante a invocação das desigualdades sociais (ontem no discurso dos intelectuais orgânicos do holocausto judeu, hoje nas declarações de um Secretário de Justiça que, se fosse pobre... roubaria). É que assim se promove o estado de transição da sociedade, focalizado pela estratégia da revolução – mediante o deslocamento da criminalidade endêmica no campo intra-social para a esfera das relações intersociais. Acirrada a luta de classes, pela liberação do ressentimento e da delinqüência, estabelece-se um estado de guerra interna, que emula a instauração do terror pelo argumento da sua própria necessidade – uma velha armadilha, que de novo se apresta a absorver as mentes e os corações dos mais desavisados ou equivocados combatentes por um mundo melhor.

     Mas tudo isso não é uma inevitabilidade histórica... nem mesmo enquanto pauta e tônica para uma nova edição do Fórum Social Mundial. Por decisão dos seus organizadores, seremos novamente anfitriões desse mega-evento em 2002, cabe agora à sociedade porto-alegrense e gaúcha debater e decidir, se pretende sediar e financiar, com os recursos do erário, um mega-comício para a (re)eleição do PT (e, mais adiante, para a tomada do poder de Estado pelas suas correntes mais radicais), ou se vai estabelecer os limites e diretrizes que as nossas tradições democráticas e a seriedade das nossas convicções políticas impõem à participação da esfera pública municipal e estadual neste evento. Com a palavra, e espero também com a iniciativa concreta dessa intervenção, os excluídos do "happening" Januário de Porto Alegre.

 
MENSAGEM RECEBIDA DE HÉLIO GAMA, 18/02/01:
Caro Aydos,
Acho que estamos ligados na mesma onda: estamos diante de um esforço descomunal de um bando de radicais com propostas medievais que, no entanto, está dando um banho no resto da sociedade para conquistar corações e mentes. É incrível.
Tens toda a razão em relação ao Forum 2002, ainda que tenha sido meio esvaziado pelas ONGs. A sociedade tem duas tarefas aí: no meu entendimento: impor pluralidade ao próximo Fórum; e exigir o afastamento das influências partidárias. Para isso, a sociedade tem que: a) mobilizar as ONGs democráticas; e b) impor limites à atuação das ONGs internacionais cujos financiadores não tem a menor idéia do que estão fazendo com o dinheiro deles. precisam saber, não te parece?

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