O feminino na literatura de cordel: desafios de Cícero Pedro de Assis

Maria Lindamir Aguiar Barros

A figura feminina é um tema recorrente em toda literatura ocidental, e na literatura de cordel ela é descrita ora como moça casadoira, ora como donzela, ora como prostituta ou doméstica. Um vasto continente de personagens femininas desfila pelas trovas, mas, na maioria, são senhoras e senhoritas aparentemente recatadas, mães ou mulheres submissas, voltadas para o trabalho doméstico, destinadas à procriação.

A amada distante é geralmente descrita segundo moldes românticos, uma figura idealizada de mulher cujas características a divinizam e a aproximam da figura casta de Maria. Ou, encontramos a contrapartida a essa figura cristã, aquela mais próxima de Eva, a Vênus cujo erotismo aparece seduzindo os que dela se aproximam. A idéia da mulher fatal versus a mulher donzela. Ou ainda, podemos investigar a existência de mulheres-estátuas, efígies, inatingíveis, estéreis cuja feminidade não é fonte de vida, cuja força está nas orações como é o caso das rezadeiras.

Nos desafios de Cícero Pedro de Assis encontramos uma personagem feminina casta e pudica, um amor inacessível. Percebe-se nos seus versos que o poeta apaixonou-se por uma mulher bem mais jovem, e essa diferença de idade é o obstáculo para a concretização deste amor. Em todas as estrofes nota-se a exaltação de um amor infeliz ou irrealizável, perpetuamente insatisfeito. A ela o masculino dirige sempre seu lamento. Essas estrofes exemplificam o papel que a mulher exerce em muitas das histórias da literatura de cordel: o papel de dama distante que se deseja amar. Um amor que é um culto ao feminino, mais próximo da adoração:

TERRÍVEL PROBLEMA

Eu sofro tristeza extrema

Dentro do meu coração.

Me sinto numa prisão

de fortaleza suprema.

O meu terrível problema

Só sabe quem o sofreu,

Um outro igualmente o meu

Reclamou como eu reclamo.

A moça que tanto amo

É bem mais nova que eu.

Não sei o que será de mim

Nos caminhos do amor,

O meu enorme amargo

Quer aos poucos dar-me fim.

Sou nesse sofrer assim,

Guerreiro que combateu,

Mas a batalha perdeu.

Desabafando eu exclamo:

A moça que tanto amo

É bem mais nova que eu.

Desejo muito encontrar

A minha cara- metade.

Na procura inda que eu brade

De nada vai me adiantar.

Eu nasci só pra penar.

É triste o fadário meu.

A boa sorte correu

De mim que tanto lhe chamo.

A moça que tanto amo

É bem mais nova que eu.

Só tenho decepções,

Em meu vive amoroso,

Que tem sido tenebroso

E repleto de ilusões.

Em amorosas paixões

Já cheguei ao apogeu.

Por quem amor não me deu

Nem me dar, sempre mais gamo.

A moça que tanto amo

É bem mais nova que eu.

A temática desta trova não é social, ela anuncia traços fortes de lirismo amoroso. É uma lamentação de suas decepções amorosas, a exposição de seu fadário, suas ilusões e desilusões. Ele mantém um culto, um encantamento pela mulher bem mais jovem que ele. A diferença de idade causa uma fissura entre ambos, um distanciamento gerado, talvez, pela discriminação social.

O poeta, tal qual os românticos, cultiva além da boa e terna recordação daquela que lhe produziu uma emoção indelével do amor, um sentimento que o vai carcomendo, um certo pessimismo ou o próprio saudosismo do amor perfeito: "Sou nesse sofrer assim, guerreiro que combateu, mas a batalha perdeu". Ele revela uma certa angústia e sofrimento, mostrando seu desequilíbrio, e uma certa obsessão pelo amor ideal: "Na procura inda que eu brade, de nada vai me adiantar, eu nasci só pra penar, é triste o fadário meu." Um certo sentimento de culpa nasce como conseqüência da paixão por alguém mais jovem.

O amor pela moça mais nova é sonhado como um ideal distante, e é essa busca por esse amor sem fim o mote da trova, pois todo amor impossível nos conduz para além dos limites do espaço e do tempo. A diferença de idade instiga a continuidade da trova, é o obstáculo gerador de conflitos, necessário para o desenrolar da narrativa. O trovador presta culto a uma única mulher e a não concretização desse enlace é motivo de renúncia à felicidade. Não há a manifestação de nenhum desejo sexual pela amada, mas ele a situa num ambiente puro e divinizante.

Bibliografia básica:

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. 8 ed. Coimbra: Livraria Almedina,

1991.

Autores de cordel/seleção de textos e estudo crítico por Marlyse Meyer. São Paulo: Abril

Educação, 1980.

CASCUDO, Luis da Camara. Literatura oral no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio;

Brasília: INL, 1978.

LUYTEN, Joseph Maria. A literatura de cordel em São Paulo. Edições Loyola, 1981.

_______. O que é literatura popular. Brasiliense, 1983.

GONÇALO, Ferreira da Silva. Antologia brasileira de literatura de cordel.Rio de Janeiro, 1994.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Fundação Casa de Rui Barbosa. Fundação

Universidade Regional do Nordeste. Literatura popular em verso. Antologia. Tomo II.

Coleção de textos da Língua Portuguesa Moderna.

AGUIAR NEITZEL, Adair de. Mulheres rosianas. Dissertação de mestrado. Publicação em

meio eletrônico: http://www.cce.ufsc.br/~neitzel/literatura

RIBEIRO, Lêda Tâmega. Mito e poesia popular. Funarte/Instituto Nacional do Folclore. Rio de

Janeiro, 1987.

TAVARES JÚNIOR, Luis. O mito na literatura de cordel. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro,

1980.

Análise de "O pavão misterioso": romance de João Melchíades da Silva

O feminino na Literatura de Cordel: Desafios de Cícero Pedro de Assis

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