Orfeu e Eurídice

       A história de Orfeu com os Argonautas só é contada por Apolônio de Rodes, um poeta grego do séc. III. O resto da história tem um relato muito melhor nos textos de dois poetas romanos, Virgílio e Ovídio, que têm, inclusive, estilos muito parecidos. Portanto, usamos aqui os nomes latinos dos deuses. Virgílio foi muito influenciado por Apolônio. Na verdade, qualquer um dos três poderia ter escrito a história toda, de modo como ela vem aqui apresentada.

       Os primeiros músicos foram os deuses. Atena inventou a flauta, mas nunca usou nem se destacou nessa arte. Hermes fez a lira e deu-a a Apolo, que dela tirava sons tão melodiosos que, ao tocar no Olimpo, os deuses se esqueciam de tudo o mais. Hermes também inventou a flauta de pastor para uso próprio, e dela extraía uma música encantadora. Pã criou a flauta de caniço, que canta tão docemente quanto o rouxinol na primavera. As musas não tinham nenhum instrumento específico, mas suas vozes eram belas para além de toda comparação possível.
       Também houve alguns mortais que, de tão magníficos em sua arte, quase se igualavam aos intérpretes divinos. Dentre todos, o maior sem dúvida Orfeu. De parte de mãe, era mais que um simples mortal. Era filho de uma das Musas, e também um príncipe trácio. Sua mãe dera-lhe o Dom da música, e a Trácia, onde viveu, só fez por aperfeiçoar ao máximo esse dom. Os trácios eram o mais musical de todos os povos gregos. Orfeu, porém, não tinha rival nem nesse país, nem em qualquer outra parte, a não ser quando comparado aos deuses. Sua arte no tocar e cantar não tinha limites. Nem as coisas, nem as pessoas podiam resistir-lhe.

Nas profundezas silenciosas dos bosques das
[montanhas trácias
Orfeu regia o movimento das árvores com o som de sua
[lira,
E conduzia os animais selvagens da floresta.

       Tudo o que havia de animado e inanimado o seguia. Os rochedos dos montes se moviam à sua passagem, deixavam de ser os mesmos os cursos dos rios.
       Pouco se conta sobre sua vida antes do infeliz casamento pelo qual ele é muito mais conhecido do que pela música; sabe-se que participou de uma famosa expedição, e nela deu provas de ser um de seus mais úteis membros. Partiu com Jasão, no Argo, e ali, sempre que os heróis estavam exaustos ou o remar se tornava especialmente difícil, punha-se a tocar sua lira. No mesmo instante todos recobravam o ânimo, e os remos golpeavam o mar ao ritmo da melodia. Sempre que uma briga ameaça perturbar-lhes a paz, tomava também da lira e tocava com tanta doçura e suavidade que até mesmo os espíritos mais exaltados se acalmavam e esqueciam do ódio. Também salvou os heróis das Sereias. Quando começaram a ouvir ao longe, no mar, o canto tão doce e melodioso que os fazia esquecer de tudo, a não ser de um desejo desesperado de ouvir sempre mais, e aproavam o navio em direção à praia onde estavam as Sereias, Orfeu se pôs a tocar uma melodia tão bela e vibrante que abafou o som daquelas vozes maravilhosas, mas fatais. O navio retomou seu curso, e os ventos o afastaram daquele lugar perigoso. Se Orfeu ali não estivesse, os Argonautas também teriam deixado os seus ossos na Ilha das Sereias.
       Não se sabe onde Orfeu encontrou e como cortejou sua amada, Eurídice, mas fica claro que nenhuma jovem que ele desejasse teria forças para resistir ao poder de sua música. Casaram-se, mas sua felicidade durou muito pouco. Imediatamente depois do casamento, quando Eurídice caminhava pelo campo em companhia de suas damas de honra, foi picada por uma víbora e morreu. A dor de Orfeu foi avassaladora, e ele não a podia suportar. Resolveu descer ao reino da Morte e trazer Eurídice de volta. Disse, então, para si próprio:

       Com o meu canto,
       Vou seduzir a filha de Deméter
       E também o Senhor dos Mortos,
       Comovendo-lhes os corações com minha música,
       E a trarei de volta do Hades.

       Ousou mais do que qualquer homem jamais ousaria por amor, e iniciou a terrível descida ao mundo subterrâneo. Ao chegar, pôs-se a tocar sua lira, ao som da qual toda a imensa multidão dos que ali estavam se calou, encantada com o que ouvia. O cão Cérbero deixou de ser o vigilante implacável; a roda de Íxion deixou de girar; Sísifo sentou sobre sua pedra; Tântalo esqueceu-se da sede e, pela primeira vez, os terríveis rostos das Fúrias encheram-se de lágrimas. O Senhor do Hades aproximou-se com sua rainha para escutar melhor, e Orfeu então cantou:

       Os deuses que regem o mundo das trevas e do silêncio,
       Aos quais vêm juntar-se todos os filhos das mulheres
       Todas as coisas belas acabam aqui um dia, diante de vós
       Sois os credores que jamais deixam de receber o devido.
       Breve é o momento que permanecemos na Terra
       E depois a vós pertencemos para todo o sempre
       Mas busco alguém que muito cedo veio ter convosco
       Um botão colhido antes que desabrochasse a flor.
       Tentei suportar essa perda, mas fui incapaz de fazê-lo.
       O Amor foi-me um deus por demais poderoso. Tu
                                                                       [sabes, ó rei.
       Se é verdadeira aquela velha história que sempre nos
                                                                                 [contaram
       Sobre as flores que presenciaram o rapto de Prosérpina.
       Deixa, pois, que se teça de novo para a doce Eurídice
       O pano da vida precocemente arrancado do tear.
       Vê, então, que é quase nada o que te peço
       Pois não é para todo o sempre que desejo tê-la de volta,
       Ela será tua de novo quando os seus anos chegarem ao fim.
                      

       Sob a magia de sua voz, não havia como recusar-lhe nada. Ele

Fez com que lágrimas de ferro descessem pelo rosto de
[Plutão,
E levou o Inferno a restituir o que o amor procurava.

       Chamaram Eurídice e devolveram-na a Orfeu, mas com uma condição: ela o seguiria de perto, mas ele não deveria olhar para trás enquanto não chegassem à superfície terrestre. Assim, passaram os dois pelos grandes portões do Hades e tomaram a estrada que, sempre subindo, os levaria para fora da região das trevas. Ele sabia que Eurídice estaria logo atrás dele, mas deixou-se tomar por um desejo incontrolável de olhar de relance, para certificar-se de que ela realmente ali estava. Mas percebeu que estavam quase chegando, pois a escuridão começava a transformar-se em luz cinzenta; e de um passo saiu das trevas, rejubilando-se com a luz do dia. Voltou-se então, mas o fez cedo demais: Eurídice ainda estava dentro da caverna. Orfeu viu-a na penumbra, e estendeu-lhe os braços para ver se a agarrava; mas no mesmo instante ela desapareceu. Deslizava de novo para o mundo das trevas. Ele ouviu apenas uma palavra distante: "Adeus."
       Desesperado, tentou correr atrás dela e seguí-la, mas foi proibido de fazê-lo. Os deuses não permitiriam que ele entrasse no reino dos mortos pela segunda vez enquanto ainda estivesse vivo. Foi obrigado a voltar sozinho para a Terra, mergulhado em profunda desolação. Renunciou então ao convívio dos homens e ficou a vaguear pelos ermos selvagens da Trácia, contando apenas com o conforto de sua lira, que nunca deixava de tocar. Tinha por únicos companheiros as montanhas, os rios e as árvores, que alegremente o ouviam. Por fim, foi atacado por um bando de Mênades tão enfurecidas quanto as que haviam dado a Penteu uma pavorosa. Trucidaram o músico gentil, arrancando-lhe membro após membro, depois do que lançaram sua cabeça desfigurada nas águas velozes do rio Hebro. Sempre levada por ele, passou pela foz e, intacta pelas águas, foi terminar sua trajetória na praia de Lesbos, onde as Musas a encontraram e enterraram no santuário da ilha. Juntaram todos os membros e colocam-nos em um túmulo no sopé do Olimpo, onde até hoje os rouxinóis cantam mais docemente do que em qualquer outro lugar.

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