Esta é uma dos melhores histórias de Ovídio, que a conta com grande vivacidade. Os detalhes não são introduzidos apenas a título de decoração; seu objetivo é, fundamentalmente, uma maior intensificação dos efeitos.
O
palácio do Sol era um lugar fulgurante. Tinha o brilho do ouro,
o lampejo do marfim e a cintilação das jóias. Por dentro e por
fora, tudo era resplendor e luminescência. Era sempre meio-dia,
e a penumbra sombria nunca vinha turvar a claridade. A escuridão
e a noite eram ali desconhecidas. Poucos dentre os mortais teriam
resistido por muito tempo àquela luminosidade imutável, mas
também poucos tinham descoberto o caminho que levava até lá.
Não obstante, um dia
ousou aproximar-se desse lugar um jovem que, de parte de mãe,
era mortal. Teve que parar muitas vezes para esfregar os olhos
ofuscados por tanta luz, mas o propósito que o trouxera até ali
era tão urgente que ele se manteve firme e apressou ainda mais
os passos ao entrar no palácio, atravessando as portas polidas
que conduziam à sala do trono, onde estava o Deus-Sol, envolto
por um brilho resplandecente e ofuscante. Ali o jovem parou,
incapaz de dar mais um só passo. Nada escapa aos olhos do Sol,
que imediatamente se deu conta da presença do jovem e para ele
olhou com grande amabilidade. "O que te trouxe aqui?",
perguntou, "Aqui estou", respondeu com grande ousadia o
outro, "para descobrir se és ou não meu pai. Minha mãe
disse que sim, mas meus amigos riem de mim quando lhes digo que
sou teu filho, já que em nada disso acreditam. Contei tudo isto
à minha mãe, e sua resposta foi que eu viesse pessoalmente
procurar-te." Sorridente, o Sol tirou sua coroa de luz
ofuscante, para que o jovem pudesse olhá-lo sem maltratar os
olhos. "Aproxima-te, Faetonte!", ordenou-lhe.
"Clímene te disse a verdade. És meu filho, e espero que
também não duvides da minha palavra. Pretendo, porém, dar-te
uma prova de que não minto. Pede-me qualquer coisa que quiseres
e serás atendido. Como testemunha da minha promessa, vou invocar
o Estige, o rio do juramento dos deuses."
Sem dúvida, Faetonte
já observara muitas vezes o Sol a percorrer os caminhos do Céu,
dizendo para si mesmo com um sentimento misto de respeito e
admiração: É meu pai que por ali passa!" Em seguida,
punha-se a imaginar como seria estar também naquele carro,
dirigindo os corcéis ao longo daquela vertiginosa trajetória
com a finalidade de levar a luz ao mundo. Agora, depois de ouvir
as palavras do pai, esse sonho louco estava prestes a
concretizar-se. Num instante, exclamou: "Deixa-me tomar o
teu lugar, pai! Não há coisa que eu mais queira. Só por um
dia, por um único dia, deixa-me conduzir o teu carro."
O Sol então deu-se
conta da sua própria loucura. Por que fizera aquele juramento
fatal, comprometendo-se a satisfazer qualquer desejo que passasse
pela cabeça jovem e imprudente do filho? "Meu caro
menino", disse ele, "eis aí a única coisa que eu lhe
teria recusado. Sei que não posso fazê-lo, pois jurei pelo
Estige. Caso insistas, tenho que ceder, mas não creio que o
faças. Ouve bem os esclarecimentos que tenho a fazer sobre o teu
pedido. És filho meu e de Clímene. Assim, és também mortal, e
a mortal algum é dado dirigir o meu carro. Na verdade, nenhum
outro deus pode dirigi-lo, nem mesmo o Rei dos Deuses. Reflete
sobre a trajetória que é preciso seguir. Subindo a partir do
mar, o caminho é tão íngreme que os cavalos mal conseguem
avançar, por mais descansados que estejam pela manhã. Ao chegar
a metade do percurso, a altura é tão vertiginosa que nem eu
mesmo gosto de olhar para baixo. Mas ainda muito pior é a
descida, e esta se precipita de tal forma que os Deuses do Mar,
à espera de minha chegada, ficam admirados ao ver que não me
lanço de cabeça para baixo. Guiar os cavalos é também uma
luta infindável. Sua natureza de fogo vai tornando-os mais
impetuosos à medida que sobem, e só com muita dificuldade
consigo mantê-los sob meu controle. O que não fariam eles
contigo?
"Deves imaginar
que lá em cima existem todas as espécies de maravilhas, cidades
divinas cheias de coisas belas, mas nada disso existe. Terás de
passar por feras e terríveis animais de rapina, que serão tudo
o que terás para ver. O Touro, o Leão, o Escorpião, o grande
Câncer, todos eles tentarão fazer-te algum mal, e não duvides
por um só instante que assim será. Olha ao teu redor e vê
quantas coisas belas existem no mundo. Escolhe uma que seja o
mais profundo desejo de teu coração, e ela será tua. Se
desejas uma prova de que sou teu pai, que prova melhor posso
dar-te do que meus receios pela tua vida?"
Para o jovem, porém,
toda a sabedoria contida nessa conversa não surtiu melhor
efeito. Uma perspectiva gloriosa abria-se diante dele, que já se
via orgulhosamente em pé naquele carro maravilhoso, guiando os
corcéis que nem o próprio Jove era capaz de controlar. Não
ligou a mínima para os perigos que seu pai lhe descrevera. Não
se deixou perturbar um só instante pelo medo, nem pela dúvida
sobre sua própria capacidade. Por fim, o Sol desistiu de tentar
convencê-lo. Viu que toda tentativa seria inútil e, além
disso, já não havia mais tempo para nada: o momento da partida
aproximava-se. As portas do Leste já se tingiam de seu brilho
purpúreo, e a Aurora já vinha abrindo o seu caminho cheio de
luz rósea. As estrelas abandonavam o Céu, e até mesmo a
retardatária estrela da manhã já se apagava.
Era preciso
apressar-se, mas tudo estava pronto. As estações do ano, as
guardiãs do Olimpo, aguardavam o momento de abrir as portas de
par em par. Os cavalos tinham sidos preparados e estavam
emparelhados ao carro. Com grande júbilo e orgulho, Faetonte
subiu para o mesmo e partiu. Tinha feito sua escolha, e só lhe
restava agora arcar com as conseqüências. Não que desejasse
mudar alguma coisa naquela primeira corrida magnífica pelos
ares. O próprio Vento Leste foi ultrapassado e deixado muito por
trás. As velozes patas dos cavalos passavam pelas nuvens baixas,
mais próximas do oceano, como se estivessem atravessando uma
fina névoa marítima, e depois se elevavam rumo aos ares
translúcidos das grandes alturas do Céu. Durante alguns
momentos de puro êxtase, Faetonte sentiu-se o próprio Senhor do
Firmamento. De repente, porém, algo se modificou. O carro
começou a oscilar fortemente de um lado para o outro; a
velocidade se tornou muito maior, e Faetonte percebeu que não
tinha mais o controle de nada. A corrida não era mais dirigida
por ele, mas pelos cavalos. Eram senhores da situação, e nada
havia como controlá-los. Saíram do caminho habitual e se
lançaram para cima e para baixo, para a esquerda e para a
direita. Por pouco não lançaram o carro contra o Escorpião;
depois, em uma vertiginosa escalada, quase se arrebentam contra o
Câncer. A esta altura, o pobre condutor estava quase desmaiado
de terror, e então deixou cair as rédeas.
Foi o sinal para que a
corrida se tornasse mais louca e avassaladora. Os cavalos voaram
para o ponto mais alto do Céu, e em seguida, mergulhando de
cabeça para baixo, incendiando o mundo. As mais altas montanhas
foram as primeiras a queimar Ida e Helicon, onde vivem as
Musas, o Parnaso e o Olimpo, que se eleva para além dos Céus.
Através de suas encostas, as chamas desceram para os vales mais
baixos e planos e para as terras cobertas de florestas escuras,
até que tudo passou a ser consumido pelas chamas. As fontes
evaporaram-se, e os rios foram transformados em regatos. Diz-se
que foi aí que o Nilo fugiu e escondeu sua nascente, que ainda
hoje continua escondida.
Faetonte, que mal
conseguia manter-se no carro, foi envolto por um calor infernal e
uma fumaça espessa que parecia saída de uma fornalha. A única
coisa que agora queria era acabar o mais rápido possível com
todo aquele tormento e terror. Teria saudado alegremente a
própria morte. A situação também se tornou insuportável para
a Mãe terra. Lançou um grito avassalador que foi ecoar junto
aos deuses. Estes, ao olharem lá do Olimpo para baixo, viram que
a salvação do mundo dependia de uma ação muito rápida de sua
parte. Jove pegou o raio e lançou-o contra o condutor imprudente
e arrependido. Faetonte caiu morto, o carro foi destroçado e os
cavalos enlouquecidos foram lançados nas profundezas do mar.
Através dos ares,
Faetonte caiu como uma bola de fogo sobre a Terra. O misterioso
rio Eridano, nunca visto por qualquer mortal, recebeu-o,
extinguiu o fogo e esfriou-lhe o corpo. As Náiades, com pena de
vê-lo morrer tão jovem e cheio de coragem, sepultaram-no e
gravaram em seu túmulo:
Aqui
jaz Faetonte, que dirigiu o carro do Deus-Sol.
Foi grande o seu fracasso, mas grande também sua
[ousadia.
As irmãs dele, as Helíades (filhas de Hélio, o Sol), vieram chorá-lo em sua sepultura, e foram transformadas em álamos ali mesmo, junto às margens do Eridano,
Onde,
pesarosas, vertem lágrimas eternas no leito
[do rio.
E cada uma delas, ao cair, cintila em suas águas
Como reluzente gota de âmbar.