Esta história só é contada por Ovídio. É bastante característica do que há de melhor em seu estilo: boa narração, vários monólogos retóricos e, em meio, um pequeno ensaio sobre o amor.
Já
houve um tempo em que o vermelho profundo das bagas da amoreira
era branco como a neve. A mudança de cor resultou de um fato
muito estranho e triste: a morte de dois jovens apaixonados.
Píramo e Tisbe, ele o
mais belo dos jovens e ela a mais bela virgem de todo o Oriente,
viviam na Babilônia, a cidade da rainha Semíramis, em casas
tão próximas que apenas uma parede comum as separava. Crescendo
assim, lado a lado, aprenderam a amar-se mutuamente. Queriam
muito casar-se, mas não havia como vencer a proibição dos
pais. O amor, porém, não pode ser proibido. Quanto mais se
cobre a chama, mais forte ficam as labaredas. Além disso, o amor
sempre acaba encontrando suas soluções. Não era possível
manter separados esses dois jovens cujos corações explodiam de
amor.
Na parede que separava
as duas casas havia uma pequena fenda da qual até então
ninguém se dera conta. A quem ama, porém, não há nada que
passe despercebido. Nossos dois jovens descobriram-na, e através
dela começaram, então, a sussurrar doces palavras de amor,
Tisbe de um lado e Píramo de outro. A odiosa parede que os
separava transformara-se em sua única forma de contato.
"Não fosse tua existência, poderíamos estar juntos e
beijar-nos", costumavam dizer, referindo-se a parede.
"Mas, pelo menos, podemos falar através de ti. Permites que
doces palavras de amor cheguem aos nossos ouvidos apaixonados.
Não somos ingratos." Assim falavam e, quando a noite
chegava e tinham de separar-se, era na parede que davam os beijos
que não tinham como chegar aos lábios do outro lado.
Todas as manhãs,
quando o alvorecer já expulsara do céu as estrelas e os raios
do Sol já haviam secado a geada que endurecia a relva, iam
furtivamente até a fenda e ali ficavam, às vezes trocando as
mais doces juras de amor, outras vezes lamentando o triste
destino a que pareciam condenados. Suas palavras, porém, eram
sempre trocadas em forma de sussurros quase inaudíveis. Por fim
chegou o dia em que não tinham mais condições de continuar
suportando aquela situação. Decidiram que, naquela mesma noite,
iriam tentar fugir e atravessar a cidade em direção ao campo,
onde finalmente poderiam ficar juntos em liberdade. Combinaram
encontrar-se em um lugar bastante conhecido o Túmulo do
Nilo -, sob uma árvore que ali havia, uma grande amoreira cheia
de bagas brancas como a neve, e perto da qual murmuravam as
águas frescas de uma fonte. O plano lhes pareceu perfeito, e
para eles aquele foi o mais longo dia de suas vidas.
Por fim, o Sol
mergulhou no oceano e a noite chegou. Na escuridão, Tisbe saiu
furtivamente de casa e, fazendo o possível para não ser vista,
dirigiu-se para o túmulo onde haviam combinado encontrar-se.
Píramo ainda não tinha chegado, a ela ficou a esperá-lo com a
coragem fortalecida pelo amor. De repente, porém, a luz da lua
permitiu-lhe divisar o vulto de uma leoa que se aproximava. A
fera selvagem tinha acabado de matar uma presa; tinha as
mandíbulas ensangüentadas, e vinha saciar a sede na fonte.
Estava ainda a uma distância que permitia a fuga de Tisbe; mas,
ao correr em busca de um abrigo seguro, a jovem deixou cair a
capa que trazia aos ombros. Ao voltar para o seu covil, a leoa
viu a capa e, antes de desaparecer na floresta, abocanhou-a e fez
dela apenas um monte de trapos. Ao chegar, poucos minutos depois,
foi com essa cena que Píramo se deparou. Diante dele estavam os
farrapos ensangüentados da capa e, visíveis na obscuridade, as
pegadas da leoa. A conclusão era inevitável: Tisbe estava
morta. Ele permitira que seu amor, uma jovem tão delicada,
viesse sozinha para um lugar tão cheio de perigos, e ali não
estivera para protegê-la. "fui eu que te matei",
exclamou. Do solo espezinhado, levantou o que restava da capa e,
beijando-a muitas vezes, levou-a consigo para perto da amoreira.
"Agora", disse ele, "beberás também do meu
sangue." Desembainhou a espada e cravou-a no coração. O
sangue, lançado em borbotões, atingiu em cheio as bagas da
amoreira, que então se tingiram de um vermelho-escuro.
Apesar de ainda
apavorada com a leoa, o grande medo de Tisbe era não conseguir
encontrar seu amado. Assim, resolveu arriscar-se a voltar para
junto da árvore onde haviam marcado o encontro, a amoreira dos
reluzentes frutos brancos, mas não conseguia encontrá-la. A
árvore era a mesma, mas seus ramos não deixavam entrever um só
lampejo de brilho branco. Ao olhar bem, percebeu que alguma coisa
se mexia no chão. Recuou, trêmula, mas no instante seguinte,
firmando os olhos por entre as sombras, viu claramente o que se
passava ali: Píramo, banhado em sangue e quase morto. Voou para
ele e o tomou nos braços, beijando-lhe os lábios frios e
implorando-lhe que a olhasse e falasse. "Sou eu, a tua
Tisbe, a tua amada!", disse-lhe a chorar. Ao ouvir o nome
que tanto amava, Píramo entreabriu os olhos pesados e olhou para
Tisbe pela última vez. Em seguida, a morte se encarregou de
fechá-los para sempre.
Ela então viu a espada
que lhe caíra das mãos, e bem perto dela a sua capa manchada de
sangue e esfarrapada. Num instante, compreendeu tudo. "Tua
própria mão te matou", disse, "e teu amor por mim.
Também posso ser corajosa, também eu posso amar. Só a morte
teria tido o poder de nos separar, mas agora deixará de ter esse
poder." Cravou no coração a espada ainda úmida do sangue
de seu amado.
Por fim, os deuses se
apiedaram, e o mesmo fizeram os pais dos dois jovens. O fruto
vermelho-escuro da amoreira ficou sendo a eterna recordação
desses amantes fiéis e verdadeiros. Suas cinzas estão contidas
em uma única urna, pois nem a morte foi capaz de separá-los.