O PROJETO CAD Annye de Picoli Souza DIAS O Projeto CAD (Casa de Apoio ao Deficiente) visa atender no período inverso àquele em que a criança freqüenta uma sala na APAE, à criança portadora de necessidades especiais, cujo acompanhamento de um ente familiar não se faz por motivo de trabalho. Atualmente o Projeto CAD atende cinco crianças no período vespertino, estando este número sujeito a alteração, sendo possível efetuar a matrícula dos alunos caso a necessidade particular do mesmo se ajuste aos objetivos do Projeto. A faixa etária de nossas crianças varia entre 8 e 21 anos e seu desenvolvimento global é observado por meio da particularidade de cada caso. Nota-se a heterogeneidade entre aspectos físicos e mentais, acrescidos dos fatores psicológicos, o que diferencia mais ainda cada caso e, indiscutivelmente o tipo de relacionamento familiar. O objetivo pedagógico do Projeto é estimular o desenvolvimento das habilidade s da criança através de atividades recreativas, físicas e lúdicas que diversifiquem o rol de atividades diárias pelas quais a criança passa. Entretanto, modificações enquanto planejamento ocorrem segundo a necessidade de cada criança nova que é matriculada. Relatando uma experiência No ano letivo de 1994 acompanhei como professora o primeiro ano do Projeto CAD, dos quais alguns alunos ainda continuam aqui. Durante a avaliação pedagógica e educacional estabelecemos um vínculo muito positivo enquanto "amigos", o que me possibilitou enxergar a problemática social das crianças a qual trazia conseqüências negativas ao processo de aprendizagem (além de alterações orgânicas). A proposta institucional de planejamento semestral se mostrou inoperante em função das oscilações entre centro de interesse proposto e as necessidades particulares de cada criança (em especial a aluna V.D.) e a heterogeneidade dos níveis de desenvolvimento destas cinco "crianças", o que fez com que surgisse a necessidade de relatar os resultados individualmente, pois vários deles, apesar de suas dificuldades conseguiram realizar tarefas de vida diária de forma autônoma e independente, adequando-as às suas necessidades especiais. Nossa rotina O espaço físico lembra uma casa que apoia e estimula o desenvolvimento da criança através do lúdico, pois usando alguns materiais adaptados as crianças agem espontaneamente na organização de suas atividades que seguem uma ordem, uma rotina não muito rígida. Quando chegamos ao CAD, desde abrir o portão e fechá-lo, organizar seus utensílios e materiais pessoais, num desenvolvimento de atitudes que se assemelham a um "hábito doméstico" de organização. Em seguida é em "nosso tapete" que nos sentamos para conversar, cantar e trocar vivências. Algumas crianças, já na roda da conversa estão "piscando duro" (o que significa que necessitam de repouso logo após o almoço) e cada um expressa sua "vontade de dormir" ou não (o que depende de cada idade e principalmente do horário em que se levantaram para ir à escola pela manhã). A cena se repete com freqüência. Cada aluno em seu colchão, com um fundo musical suave é estimulado pela professora que verbaliza afirmações positivas como: "Vire seu corpo bem devagar... você vai encontrar um cantinho bem gostoso e aí, então... você vai dormir! Esta atividade, que podemos chamar de "vida saudável", ao contrário das outras, em que o tempo da execução não é arbitrário, tornou necessário estipular um tempo de aproximadamente 40 minutos e corresponde a 16% do tempo que permanecem no CAD para não prejudicar o processo como um todo. Apesar disso não são todos os dias que querem dormir, assim como também em outros dias não querem acordar (dormem aproximadamente três vezes por semana) Acordados, passamos para outra situação de AVD (Atividade de vida diária), o banho individual, ao qual cada dia uma criança diferente se voluntária. Dependendo da criança a professora acompanha o banho ou apenas "reza" algumas instruções: Não esqueça das orelhas! cuide de lavar os pés! etc. Com aqueles que precisam de acompanhamento mais próximo, estimula-se o contato com a independência, cantarolando músicas que falam sobre o esquema corporal e lembrando a todo instante: ... onde lavamos? - Vamos lavar as costas!... Antes mesmo de irem ao chuveiro, separem sua roupa limpa e guardem as sujas. Aí sim, vão ao banho (despidos!...) A música lembra todas as partes do corpo, mas ainda é a "tia" quem as lembra. Bem cuidados, passamos às brincadeiras que foram selecionadas entre a hora da história, construção com sucata e argila que vem em seguida, quando eles representam tudo aquilo que entenderam. O registro gráfico não acontece com tanta facilidade, mas procuramos estimulá-los a fazê-lo; o tanque de areia e as noções de limite que ele permite, a piscina que permite outra experiência de contato com o corpo, a respiração, os movimentos e o sorriso de satisfação com o resultado: "Nós nadamos!..." Quando brincamos de casinha a "tia" é quase sempre o filho que irá obedecer ao papai e à mamãe. (Nós brincamos...) E também cozinhamos, isto é, fazemos sucos naturais e algumas outras receitas que não utilizam fogão ou geladeira. Jogos de encaixe, dama, trilha, dominó, com bola também acontecem, sempre de acordo com as sugestões das crianças. Na hora prevista para o lanche eles já estão com fome e querem organizar a mesa. A cada dia essa organização implica numa ordem diferente em espaços também diferenciados. Num dia a mesa "comprida", no outro a quadrada que é menor e "onde cabem menos pessoas" (Né tia?). Faço perguntas sobre o uso de utensílios como caneca, xícara, garfo, faca, garrafa, jarra, bandeja, cesto para pão e elas optam por usar aquelas que acham melhores. - Melhor como? Pergunto eu. - É tia, porque está quente! Quando utilizam caneca, por exemplo) e não dá para pegar assim. (utilizam o gestual para representar o copo sem asa) Servem-se sozinhos, dosando a quantidade conforme a qualidade (o tipo de lanche): - Não gosto muito de doce... Pega só meio pão com o doce e come todo ele. A limpeza dos utensílios também é responsabilidade de cada um. No tanque (não temos pia), lavam os objetos individuais que usaram com bucha e sabão em pedra ou detergente líquido. Os utensílios coletivos (cesto do pão, vasilhame do leite ou da \sobremesa) são responsabilidade de todos e a tarefa de lavá-los é dividida. Em seguida a higiene bucal, estimulada por meio de questionamento para que se lembrem da rotina. - Ah, é! Está faltando escovar os dentes! A limpeza da escola, a organização do material individual e coletivo que no início não despertavam interesse, no momento em que lhes parecia mais uma brincadeira da "tia" tem levado as crianças a "inventar" formas diferentes de realizar o trabalho: - agora eu quero lavar com a mangueira... Nossos passeios a um lindíssimo "jardim verde" que é nosso vizinho, permitiram que as crianças "lá de fora" brincassem conosco, com nossos brinquedos, deixando-nos brincar com os delas. Uma até perguntou se podia se matricular em nossa escola. Na hora de ir embora dizemos um "até logo" para a "escolinha" (que é como as crianças chamam carinhosamente o espaço do Projeto CAD), fechamos tudo e voltamos para o prédio da APAE, de onde tomam a condução para voltarem para casa. Uma nova proposta de atividade Visando uma maior interação social,já que um dos problemas de nossa criança é a aceitação por parte da sociedade, em conjunto com as professoras do período vespertino, optamos por realizar uma atividade semanal em que fossemos à cozinha para trabalhar receitas variadas, por sugestão das crianças. Começamos com uma receita de gelatina colorida que deu oportunidade de explorar os conceitos de forma, consistência além do paladar e olfato. O registro da receita foi feito num cartaz onde cada aluno escrevia à sua maneira (com sua própria escrita) uma parte que era completada pelo outro. Também desenhavam. Uma das classes, a de Alfabetização está escrevendo as receitas que é passada para os outros depois. Já fizemos bombons (e até embrulhamos) pão doce, sorvete de saquinho etc. Nas aulas de cozinha somos sempre socorridos pelas tias Matilde e Neuza, respectivamente a faxineira e cozinheira da APAE e muito elogiadas pelos apreciadores de nossas descobertas. Foi muito gratificante para o grupo quando um aluno que havia levado a receita de pão para casa contou que sua mãe fez o pão e adorou. Descoberta de uma nova postura? Não sei se o relato aqui apresentado foi suficiente para mostrar ao leitor que nosso trabalho expressa hoje a tentativa de construir uma nova prática. Em lugar de dirigir, "mediar", deixando que as "descobertas" e as "realizações" fiquem por conta daqueles que estão se desenvolvendo, propiciando condições para que neste des-envolver,uma nova atribuição,a de agentes ativos num processo educacional em transformação permita a estas crianças,mesmo diferentes,uma revisão de seu rumo na construção de uma sociedade mais democrática. Melhorando sua auto-estima e permitindo que se sintam úteis e independentes, pelo menos nas mais rotineiras atividades da vida diária.
|