O PAPEL DA PROFESSORA: informar ou mediar? Estas nossas andanças pelas salas de aula têm sido muito mais úteis para ampliar nossos conhecimentos do que propriamente para ensinarmos qualquer coisa a quem quer que seja. Até as crianças, que na maior parte das situações nem é lavada em conta pelos adultos quando emitem suas opiniões porque não têm seu saber valorizado pelos adultos vêm dando lições de sabedoria que valem a pena ser contadas. Num dia destes, numa visita à classe de Pré II, da Profª Valdeci vivi uma experiência inesquecível. O assunto do dia era "O circo" e a professora já havia preparado um texto para ser trabalhado em forma de leitura e escrita. Chegando na classe, antes que ela passasse para o assunto do dia, perguntei às crianças sobre qual assunto eles haviam falado antes. Eles me responderam que estavam falando sobre lendas, porque estávamos exatamente no "dia do folclore". Se o planejamento fosse linear, teríamos no máximo duas opções para dar continuidade ao trabalho: aproveitar o assunto "lendas" para explorar o tema folclore ou esquecer o assunto e simplesmente discutir o tema planejado, isto é, o circo. De qualquer forma acredito que perderíamos excelente oportunidade de "viajar" com as crianças pelo seu mundo e construir com elas um novo ponto na rede de conhecimentos. Optei por continuar com o folclore e ver o que iria acontecer. Falei com eles: - Nosso folclore tem muitas histórias interessantes... - Como do saci, né? O saci tem uma perna só porque a outra não quis sair... - A sereia que apareceu p’ro pescador... - A mula sem cabeça... - Mas, será que isso é verdade? - Não, é lenda... - O pião, a bola de gude... - Espera! O pião e a bola de gude não existem? - Existe. - Então não é lenda. O que é? - É brincadeira... A professora interfere: - O que a sua mãe falou, Luiz Henrique? - Ah! Ela falou que leu no jornal que apareceu um lobisomem numa cidade por aí. - Mas será que lobisomem existe? - Eu não sei mais... - Eu acho que isso tem uma explicação. É meio complicado e às vezes difícil de entender, mas quando vocês forem estudar ciências no curso colegial vocês vão aprender tudo sobre isso. Vocês querem saber? - SIIIIM!! - É que algumas pessoas, quando nascem, têm alguma coisinha dentro delas chamada gen diferente dos nossos, que faz os pelos crescerem muito. São os genes que dizem como é que as pessoas vão ser. A cor dos olhos, a cor dos cabelos... - Gen!!! - Isso, em algumas pessoas existe esse gen que faz com elas tenham muitos pelos pelo corpo. - Eu tenho pelo na perna... - Mas isso é normal. Estas pessoas de quem nós estamos falando tem MUUUUITO pelo. E por isso tem quem as confunda com lobisomem, Mas na verdade elas são exatamente como nós, só que têm mais pelos no corpo todo.. - Os pais também têm pelo na cara. E se deixar crescer fica muito peludo. - E tem uns que tem nas costas também... - Sim, estes pelos fininhos, como vocês estão falando, todos nós temos. É uma forma de proteção. Mas estas pessoas de quem a mãe do Luiz Fernando ouviu falar são muito peludas mesmo e por isso geralmente elas vão trabalhar no circo. (Eu quis aproveitar aqui e tentar fazer uma relação com o tema programado.) Vocês nunca ouviram falar de circos que têm como atração a "mulher barbada" ou o "homem macaco"? - Eu já, eu já... - Tem lá nos Estados Unidos... - Acho que tem no mundo inteiro, mas não são lobisomens, são pessoas que trazem essa diferença no corpo por causa de seus... - Genes. - Muito bem, são os genes que fazem com que algumas pessoas sejam muito diferentes da gente. Elas não têm nada a ver com a lenda do lobisomem. Elas apenas têm alguma coisa diferente no organismo que mudou a aparência delas. Se a gente olhar bem aqui na sala vamos ver alguns que têm cabelo preto, outros que têm cabelos loiros... - Que nem eu, né, tia? - Isso, outras que têm cabelo liso, outras com cabelos crespos... E estas pessoas têm cabelos no corpo in... - teiro. - Então eu vou contar isso p’ra minha mãe. - Muito bem! Você pode dizer p’ra ela que existem estas pessoas cujo corpo está coberto com mais pelos, que alguém que as viu um dia pensou que era lobisomem, mas que o lobisomem é lenda, existe só na cabeça de quem imaginou e dos que acreditam, porque na verdade lobisomem é uma ... - Lenda. - Tia, e o dinossauro, é lenda? - Que é que vocês acham? - Eu acho que existiu. - Eu não sei direito mas acho que existiu porque tem osso de dinossauro no museu. - Como é que você sabe? - Eu vi na televisão. - E vocês, o que acham? - Acho que existiu... - Pois é, dinossauro realmente existiu. Existiu há muitos anos... - Nem os homens existiam... - Nem os homens existiam! Então como é que a gente comprovou que os dinossauros existiam se nem os homens existiam ainda? - Porque eles saem da água... - Mas não é só por isso! Mas porque os cientistas fizeram pesquisas... Como é isso? - Eles cavam a terra... - Bom, eles cavam a terra só um pouquinho ou muito? - Tem lugar que cava muito e noutros cava um pouco. - E como pode ser isso? - E porque tem lugar que o vento leva a areia e aparece. - Aparece o que? O dinossauro? - Não, o osso. - Muito bem, aí eles levam para os laboratórios ou para os museus e vão... - Estudar. - Aí daquele osso vira um dinossauro... - Será? Acho que não. - Como é que é, então? - Alguém sabe me dizer? - Acho que os "cara" faz desenho p’ra virar filme... - Você chegou perto. Eles fazem realmente desenhos a partir dos ossos encontrados e reconstroem a imagem do dinossauro ou qualquer outro animal que poderia ter sido o dono do osso. - Um cachorro... A classe ri. - Será? - Não é isso, é o dono porque ia comer o osso... - Ah! Tá... - Mas não ia caber na boca do cachorro... - Por que? - Porque osso de dinossauro é muito grande. - Também o osso é muito duro. - E por que o osso é muito duro? - Porque o dinossauro é muito forte. - Mas tem uma outra coisa. - O dinossauro é bravo? - Será isso? Vamos ver. O dinossauro existiu há quanto tempo: muito ou pouco? - Muito... - Se ele existiu há muito tempo o osso é muito... - Velho... - Muito bem, ele é velho; e sabem porque ficou tão duro? - ... - Porque debaixo da terra o tempo fossilizou o osso, endureceu demais. - Existia muitos índios. - Mas os índios vieram depois. No começo do mundo não tinha índio... - Muito bem, na evolução do mundo as espécies foram surgindo uma que cada vez. Vocês querem saber mais ou menos como é que as coisas aconteceram? Para a classe atenta eu tentei traçar uma linha do tempo e chegar da formação da terra até os nossos dias, numa linguagem o mais simples possível mas que, de qualquer forma permitiu a participação ativa e interessada das crianças como estivera acontecendo até então.(*) Depois da "conversa" fomos "trabalhar" e as crianças resolveram desenhar aquilo que elas entenderam denominar: "As páginas da história", sendo que cada uma delas se incumbiu de registrar uma determinada data. Durante o trabalho as crianças conversavam entre si, trocando informações, estabelecendo juízos de valor sobre o próprio trabalho e o dos colegas. Mas, o que realmente me chamou a atenção, foi uma observação feita pelo Luiz Fernando sobre o desenho do Luizinho. Quando a classe me perguntou se o registro do "livro" seria na forma de desenho ou escrita, sugeri que cada um fizesse sua própria escolha, pois seria indiferente. Luizinho, que registrou o início da história, na época dos dinossauros, desenhou os animais e algumas árvores, escrevendo o nome de cada um deles. Luiz Fernando, por sua vez, olhando o trabalho do colega, afirma categoricamente: - Não pode escrever. O outro não entende bem. - Não pode escrever! ele insiste. A que Luizinho retruca: - Pode sim, ela disse que podia ser desenho ou escrita. Eu resolvi fazer os dois. - Mas no seu não pode! - Pode sim, você não manda... - Não pode não! No seu não pode! Você não tá lembrando que naquele tempo nem tinha homemm, como é que ia ter letra?... Como se pode ver, acho que a criança não precisa tanto ser informada ou ensinada como imaginamos (o que nos leva preconceituosamente a decidir por conteúdos pobres e atividades de repetição). Se assumirmos o caráter mediador de nosso trabalho, além de situações mais ricas, com certeza conseguiremos despertar muito maior interesse nos alunos, sem que tenhamos que nos preocupar em "controlar" a classe, "manter a disciplina" ou "dominar" as crianças, como tem sido a problema dos professores nos últimos anos.(*) Mais um exemplo de mediação é o que se pode ver na aula que Ana Cláudia descreve a seguir. |