Um
perfil psicológico de Salazar
Onde a imagem fiel ? |
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Quando Alberto de Monsaraz, no tempo do Nacional-Sindicalismo lhe falou
no espírito saudável e audacioso dos camisas azuis, Salazar
teve este comentário:
- Eu, se tivesse de aparecer em público com uma camisa dessas,
morria de vergonha.
Um pudor exagerado da manifestação de sentimentos, o temor do ridículo, a consciência de que a febre e a exaltação permanente são coisas malsãs, tudo está naquela resposta.
Mas como era ele na realidade? Os seus amigos mais próximos, as pessoas com quem privou mais de perto têm ido desaparecendo na morte: José Nozolini, Mário de Figueiredo, João Lumbrales, José Soares da Fonseca. O mais próximo pela antiguidade de convívio e pela superioridade de entendimento, o Cardeal Cerejeira, seguiu-se àqueles no chamamento do tribunal divino.
António Ferro, que lidou de perto com o estadista, falando com frequência de assuntos que ultrapassavam a matéria restrita do despacho, tomava sempre notas das conversas com a intenção de um dia as contar em livro. Ele próprio confessou o deslumbramento que eram as palavras de Salazar: « - É uma verdadeira máquina de raciocinar. Pega num assunto e examina-o rapidamente sob todos os ângulos, de forma a deixá-lo esgotado. As conversas do Dr. Salazar são um verdadeiro espectáculo, um dos espectáculos mais impressionantes a que tenho assistido».
Compreende-se bem a admiração do homem que era fundamentalmente artista, do intuitivo, que gostava de se aventurar em audácias rasgando o negrume, pelo meditativo-activo, que também avança contra as trevas, mas depois de fabricar primeiro a lanterna que lhe ilumina o caminho.
Após a morte de António Ferro, tivemos um dia oportunidade de falar sobre o assunto com a viúva e soubemos da desgraça: num princípio de incêndio havido meses antes na sua residência queimaram-se alguns papéis do arquivo do escritor e entre eles as notas das conversas com Salazar. Parece que o destino se obstinava em arquivar na História a imagem dum homem tão fora do comum - que era desumano. A imagem falsa.
Henrique Martins de Carvalho, que foi ministro no tempo de Salazar, escreveu um dia ter sido este a personalidade mais fascinante que ele conhecera.
Mas como era realmente «por dentro» essa personalidade fascinante? Será de considerar, antes do mais, uma hiper-sensibilidade a que se junta a inteligência extraordinariamente lúcida e essa sim, é que era fria, descarnada, implacável. Dir-se-ia mais, que era uma inteligência de certo modo feminina, no sentido de ser atenta a todos os pormenores, de ser essencialmente objectiva, de não se confundir com a emotividade - de ser mais inteligência. Explicitando melhor: no mecanismo intelectual, o homem está mais ligado a factores de ordem emocional, deixa dominar a inteligência pelas paixões, pelos entusiasmos, pelos ódios, pela simples sugestão de certas palavras, pelos mitos, pelo absurdo império das abstracções.
A inteligência de tipo feminino é mais clara, mais atenta à realidade objectiva, mais lógica, mais segura nas relações de causa e efeito, mais próxima da compreensão das intuições - mais inteligência. Nós não damos em regra por isso, porque não distinguimos entre a essência das coisas e as dimensões dos campos em que as mesmas coisas naturalmente actuam.
Afigura-se-nos que foram as mulheres quem principalmente compreendeu o distante, o inacessível Salazar. O encontro dessa hiper-sensibilidade não mostrada mas pressentida e, ao mesmo tempo, esse encontro de essências de inteligência são a primeira razão, porventura indefinida, do entusiasmo das mulheres pelo Presidente do Conselho.
É certo que as mulheres lhe deveram uma política em que lhes foi reconhecido o mais alto respeito, em contraste com o «machismo» característico das sociedades precedentes. Por outro lado, uma política que defendeu intransigentemente a paz interna e externa. Mesmo quando a paz deixou de ser uma realidade com as guerras que nos fizeram no Ultramar, nem por isso as mulheres o abandonaram - porque não basta haver paz, é preciso que essa paz não seja vergonhosa e principalmente que possamos existir para usufrui-la.