Um perfil psicológico de Salazar 

A Ordem, a Disciplina, a Autoridade

Quem era Salazar ? 
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A ORDEM, A DISCIPLINA, A AUTORIDADE

O sentimento da ordem implica a necessidade da disciplina. Só através desta a ordem se consegue. Salazar é dum rigor extremo na disciplina da sua vida: levantar às 8h30, depois de ter dormido pouco e mal. Lê os jornais. Às 10 inicia o trabalho, que o absorve até às 14. Fala pouco nessa altura: tem uma certa preguiça no falar, que o leva até a pedir algum processo, por sinais, ao secretário. Às 14 o almoço, rápido, ingerido num quarto de hora. Um breve passeio pelo jardim. Depois as audiências. Às 17, trabalho com os ministros, individualmente, porque os conselhos de ministros são raros. Às 21 o jantar. Quando tinha em casa as pupilas da governante, conversava com elas. Às vezes tem visitas à noite, uma ou outra pessoa com quem trabalha. No geral, à meia-noite recolhe à cama, mas não deixo, até no meu medíocre sono, de me pôr questões, de discutir comigo próprio.
 

Ordem na vida. Ordem no trabalho. Ordem nas ideias. Algo deve nesse ponto ao seminário. Confessou-o em 1919, na resposta ao inquérito:
O depoente diz me ter conhecido no Seminário e no Liceu de Viseu. Eu cursei efectivamente aquele Seminário de 1900 a 1908, e fiz os meus exames no Liceu em 1909 e 1910.
Do Seminário nada digo. - Há pessoas que desconhecem que pode haver na alma dos outros coisas inolvidáveis e sagradas, que a gente esconde cuidadosamente das vistas dos tolos e dos maus, porque não podem compreendê-las nem são capazes de senti-las. Pobre, filho de pobres, devo àquela casa grande parte da minha educação que de outra forma não faria; e ainda que houvesse perdido a fé em que me lá educaram, não esqueceria nunca aqueles bons padres que me sustentaram quase gratuitamente durante tantos anos, e a quem devo, além do mais, a minha formação e disciplina intelectual.

Tão radicada era em si a preocupação da ordem, que esta se manifestava nas mais pequenas coisas. Ao passear pelo jardim, por exemplo, detinha-se a sacudir com a volta do guarda-chuva um ramo da japoneira, para fazer cair as camélias secas...

Da necessidade da disciplina deriva a exigência de autoridade.
Neste ponto - o da autoridade - era Salazar de uma intransigência rígida. Compreendendo muito, perdoando umas fraquezas, sorrindo perante outras, era inflexível em questões de disciplina.
A autoridade era para ele um dever que impendia em primeiro lugar sobre quem a exercia, porque não era vantagem para quem a detinha, senão benefício da própria comunidade. Daí o dever de não deixar de intervir sempre que necessário:
- A autoridade que se não exerce, perde-se.
Por isso havia nele, em regra, pouca disposição a conceder amnistias. A justiça tinha de ser feita na medida certa: nem de mais, nem de menos. Uma vez proferida a sentença, haveria que cumpri-la. A amnistia representa as mais das vezes uma contradição relativamente à justeza da lei e à força da sua aplicação.

Em 1942 os sindicatos levantaram-se numa espécie de revolta contra o Subsecretário das Corporações de então, Trigo de Negreiros. Foram auxiliados por alguns funcionários superiores do Instituto Nacional do Trabalho.
Conseguiram os dirigentes sindicais ser recebidos pelo Presidente do Conselho, a quem expuseram as suas reclamações. Dias depois houve uma grande sessão no Coliseu dos Recreios, presidida pelo mesmo Salazar.
Achou ele legítimo o procedimento dos sindicatos em relação ao Instituto. Eram associações livres, podiam manifestar-se discordantes do pensamento do ministro. Também achou legítimo que pessoas estranhas ao Instituto acompanhassem os trabalhadores nas suas manifestações. Do que ele não gostou foi que funcionários do Instituto houvessem tomado uma atitude de rebelião perante o seu superior hierárquico. Nunca lhes perdoou. Não confundia discordância legítima com a indisciplina de funcionários.

Esta imagem do chefe e garante de uma disciplina, de uma autoridade necessária é que se gravou mais fundo na mentalidade popular.

Um dia, na Nazaré, uma pequena peixeira quis dependurar-se, com perigo de cair e de se magoar, numa camioneta de passageiros. Um senhor de idade, que viajava no carro, admoestou-a:
- Não te agarres aí, que podes cair!
A pequena recuou, olhou rancorosa para o senhor impertinente e, no pitoresco falar da terra, largou-lhe esta:
- Oh puto senhorito, mas que Salazar és tu?

Aos olhos do povo, Salazar era, mais do que o nome dum homem, a imagem viva da autoridade legítima, só ela com o direito de mandar.
Todavia, Salazar dizia que não gostava de mandar. Fazia-o apenas por dever da função, por imperativo da missão a que fora chamado.
Já em 1924, numa conferência feita em Braga, referindo-se ao poder, dizia:
Não se deve aspirar ao poder como se aspira a um direito, mas deve-se aceitá-lo e exerce-lo como um dever.
Mais tarde confirmaria:
O poder só pode agradar aos tolos e aos predestinados. Os tolos desejam-no pelas vantagens que dele esperam. Os predestinados gozam-no pelo que para eles representa. Todos os que, como eu, não podem enfileirar em nenhum desses grupos, sentem-se deslocados. Eu compreendo que haja quem tenha o amor do comando e sinta prazer em governar, mas esse não é o meu caso. Nada me interessando riquezas ou honrarias, não gostando de mandar, sempre trabalhei sem exaltação.

Lembram-lhe que Cerejeira lhe ouviu dizer, ainda estudante: Sinto em mim certa capacidade de comando. Salazar quase se irrita:
Podemo-nos sentir capazes de governar, embora não tenhamos de modo algum gosto pelo poder! E eu não tenho gosto pelo poder porque ele não me seduz. Não me dá nenhuma satisfação, nem ao menos a compensação natural das canseiras, das desilusões e dos sacrifícios que implica. Demais, uma tal indiferença pelo poder não é incompatível com a posse das qualidades que ele exige.
Como se dissesse:
- Sinto em mim uma certa capacidade de comando mas não gosto. Essa capacidade é contra o meu feitio. Prefiro obedecer.

Noutra ocasião declarou, risonho, a Manuel Múrias:
- Gostaria de ser primeiro-ministro de um rei absoluto!
Pode talvez estar nesta frase a chave da contradição: ele gosta de mandar no sentido de estabelecer previamente uma ordem de realização, de ser o agente de acontecimentos e motor de homens, em nome de uma vontade superior e em ordem a um fim justo. Sabe que tem qualidades para tanto. Mas não gosta de mandar em tanto que o acto representa de expressão externa da vontade que determina, tal como lhe repugna a limitação da sua actividade pela força de maiorias ignaras.

Até que ponto, contudo, o homem que para realizar uma obra política precisa de exercer comando não é atraído pelo fastígio deste?
Ele nega-o. O poder não é um fim em si mesmo. É apenas o meio necessário para realizar uma obra. Seria excelente que, realizada esta, ele pudesse retirar-se do poder. Mas a obra política é como a pedra de Sísifo: há sempre que a impelir pela encosta acima. Dificilmente. Dolorosamente. Em política nada é fácil. Não é simples assegurar a ordem sem violência, o trabalho na disciplina e a realização das grandes obras colectivas sem haver choques. Estou esgotado. É tudo muito difícil.

Nem sequer é de esperar a compreensão dos governados, porque não se pode ao mesmo tempo encantar e governar a multidão.
Desistir então? Nem pensar nisso! O que nos é imposto por um plano de dever nacional, faz-se ou morre-se, mas não se deserta.

Ao secretário, que o prevenira de ameaças contra a sua vida afirma depois:
As ameaças de que me fala estavam na lógica do acontecimento, e se a morte me surpreendesse, teria morrido feliz.

Teve muitos inimigos, como é próprio dum governante e inevitável nos homens superiores. Inimigos rancorosos, implacáveis, a quem a cegueira do ódio é capaz de levar aos mais terríveis extremo.

Quando da campanha eleitoral de 1948, em que surgiu como candidato à presidência da República, contra Carmona, o general Norton de Matos, contava este a um amigo que um homem o tinha procurado a manifestar-lhe a intenção de assassinar Salazar. Norton de Matos proibiu-o terminantemente de tentar tal infâmia e despediu-o.
Depois das eleições, aliás, o mesmo general confidenciava, apontando para a zona da cidade em que o Presidente da Conselho vivia:
- Ele está ali. Eu aqui. O País passa entre nós dois. E o drama está em que nem eu posso aproximar-me dele nem ele de mim.

Não se sabia que Salazar fosse inimigo de alguém. Apreciava os adversários com superioridade de juízo, jamais com ódio.
Um dia em que um moço tenente do 28 de Maio quis escrever palavras da I República que hostilizavam o novo regime (em todo o caso não tão desagradáveis como as do livro «Pulhice do Homo Sapiens» do então também tenente Humberto Delgado), Salazar dissuadiu-o:
- Não faça isso! Olhe que eles eram pessoas de bem e sinceramente convencidas das suas razões.

Muitos anos mais tarde, recomendou que se tratasse com a maior deferência o escritor Jaime Cortezão, quando este veio do Brasil a Portugal para trabalhos de investigação em arquivos e bibliotecas. Que lhe dessem todas as facilidades:
- Tratem esse homem com o maior respeito. Quando todos nós tivermos desaparecido e formos esquecidos, o nome dele brilhará como o de um grande nacionalista, pelo sentido e pelo valor da sua obra. De resto, não perdi a esperança de que ainda se aproxime de nós.
Aqui enganou-se. Jaime Cortezão fora outrora um dos mais duros inimigos de Salazar. Dirigira uma conspiração em que se previra o assassínio do Chefe do Governo - e por isso Cortezão foi processado e mais tarde esteve preso. Também escreveu no mesmo sentido um poema feroz.

A magnanimidade de Salazar só passageiramente venceu Cortezão, que por essa altura lhe ofereceu livros com dedicatórias respeitosas, o que não o impediu depois de encabeçar a violenta campanha política contra o Estado Novo. Havia ligações antigas e permanentes - ele o confessou - que a tanto o obrigavam.


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1 de Setembro de 1997
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