Um perfil psicológico de Salazar 

O orgulho do Homem e do Estadista

Quem era Salazar ? 
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O ORGULHO DO HOMEM E DO ESTADISTA

Um dos seus traços mais marcados é o orgulho. Não o orgulho no sentido da hipertrofia do Eu, que faz considerar os outros em plano de inferioridade, ou se aproxima da vaidade, levando a querer parecer mais do que é. Orgulho - no sentido de não querer parecer menos, nem desprezível, nem ridículo. Orgulho - no sentido do respeito pela própria personalidade. Isto cria um estado constante de alerta, de desconfiança. E aí se explicará a aceitação natural de um certo isolamento. . .

Procura ser mais do que é. Teve ambições no plano da sua vida universitária. Teve-as, a par do sentido do dever, na sua actividade social de católico militante. Teve-as, por certo, quando se encontrou diante das portas do poder.

Receia não conseguir realizar-se ou parecer menos do que efectivamente é. Receia falhar. Receia não estar à altura de realizar o que lhe propõem. A sua primeira atitude é de perplexidade. Não quer dar passos em falso. Examina de todos os ângulos o caminho que se lhe apresenta. Mas quando se decide, então avança resolutamente direito ao fim. A linha natural de acção converte-se em regras de trabalho: estudar na dúvida, realizar com fé.

Este carácter já o assinalam desde a adolescência os seus antigos colegas. Mário de Figueiredo diz que Salazar hoje, como outrora, mantém, aquela forma de orgulho que sempre lhe fez recear secretamente o ridículo. Hesita muito tempo antes de se lançar na acção. Há nisto qualquer coisa de oriental, para quem o tempo não tem o mesmo valor que para os homens do Ocidente.

Quando o General Vicente de Freitas o convidou para Ministro das Finanças, teve medo, confessou:
- Encarava a possibilidade de falhar. Imagine que eu não conseguia pôr em ordem as contas do Estado. Que pensariam de mim os meus alunos, na Universidade?

Mas o orgulho de Salazar não era cego. Conhecia-se:
Os limites impostos pela natureza ao orgulho humano, sem contar as insuficiências e as injustiças, entristecem-me constantemente o espírito.

Esse orgulho aponta-lhe as deficiências como orador:
Obrigado a falar, sem os dotes naturais dos oradores, sem essa magnífica consciência da superioridade própria sobre a multidão que dá o sangue-frio, o à-vontade, a clareza dos raciocínios e a facilidade de expressão do pensamento...

Era inevitável no hipersensível, no tímido, no introvertido, esta indisposição para a alocução tribunícia. Mas o orgulho, ao reconhecê-lo, não ignora as compensações: a improvisação oratória é inimiga da precisão do pensamento.
É o orgulho quem lhe dita a afirmação de que não fará a quem quer que seja o gosto de deixar o Governo:
Este homem que foi Governo, não queria ser Governo. Foi deputado; assistiu a uma única sessão e nunca mais voltou. Foi Ministro; demorou-se cinco dias, foi-se embora e não queria voltar. O Governo foi-lhe dado, não o conquistou, ao menos à maneira clássica e bem nossa conhecida; não conspirou, não chefiou nenhum grupo, não manejou a intriga, não venceu quaisquer adversários pela força organizada ou revolucionária Não se apoia aparentemente em ninguém e dirige-se amiúde à Nação, entidade bastante abstracta para apoio eficaz. Tem todo o ar de lhe ser indiferente estar ou ir; em todo o caso, está. Está e há tanto tempo e tão tranquilamente como se ameaçasse nunca mais deixar de estar. Suporta os trabalhos do Governo, sofre as injustiças, os insultos dos desvairados, os despeitos, as raivas dos impotentes. Vai engolindo, de quando em quando, a sua conta de sapos vivos, comida forçada de políticos, segundo pretendia Clemenceau. E está, e fica...

E o mesmo orgulho lhe ditará a sua confissão pública em 1949:

Devo à Providencia a graça de ser pobre: sem bens que valham, por muito pouco estou preso à roda da fortuna, nem falta me fizeram nunca lugares rendosos, riquezas, ostentações. E para ganhar, na modéstia a que me habituei e em que posso viver o pão de cada dia, não tenho que enredar-me na trama dos negócios ou em comprometedoras solidariedades. Sou um homem independente.

Nunca tive os olhos postos em clientelas políticas nem procurei formar partido que me apoiasse mas em paga do seu apoio me definisse a orientação e os limites da acção governativa. Nunca lisonjeei os homens ou as massas, diante de quem tantos se curvam no mundo de hoje, em subserviências que são uma hipocrisia ou uma abjecção. Se lhes defendo tenazmente os interesses, se me ocupo das reivindicações dos humildes, é pelo mérito próprio e imposição da minha consciência de governante, não por ligações partidárias ou compromissos eleitorais que me estorvem. Sou, tanto quanto se pode ser, um homem livre.

Jamais empreguei o insulto ou a agressão de modo que homens dignos se considerassem impossibilitados de colaborar. No exame dos tristes períodos que nos antecederam esforcei-me sempre por demonstrar que de pouco valiam as qualidades dos homens contra a força implacável dos erros que se viam obrigados a servir. E não é minha a culpa se, passados vinte anos de uma experiência luminosa, eles próprios continuam a apresentar-se como inteiramente responsáveis do anterior descalabro, visto teimarem em proclamar a bondade dos princípios e a sua correcta aplicação à Nação Portuguesa. Fui humano.

Penso ter ganho, graças a um trabalho sério, os meus graus académicos e o direito a desempenhar as minhas funções universitárias. Obrigado a perder o contacto com as ciências que cultivava, mas não com os métodos de trabalho posso dizer que as reencontrei sob o ângulo da sua aplicação prática; e, folheando menos os livros, esforcei-me em anos de estudo, de meditação, de acção intensa, por compreender melhor os homens e a vida. Pude esclarecer-me.

Não tenho ambições. Não desejo subir mais alto e entendo que no momento oportuno deve outrem vir ocupar o meu lugar, pare oferecer as serviço da Nação maior capacidade de trabalho, rasgar novos horizontes e experimentar novas ideias ou métodos. Não posso envaidecer-me, pois que não realizei tudo o que desejava; mas realizei o suficiente para não se poder dizer que falhei na minha missão. Não sinto por isso a amargura dos que merecida ou imerecidamente não viram coroados os seus esforços e maldizem os homens e a sorte. Nem sequer me lembro de ter recebido ofensas que em desagravo me induzam a ser menos justo ou imparcial. Pelo contrário: neste país, onde tão ligeiramente se apreciam e depreciam os homens públicos, gozo do raro privilégio do respeito geral. Pude servir.

Conheci Chefes de Estado, Príncipes e Reis e ouvi discretear homens eminentes de muitas nações, ideologias e feições diversas sobre as preocupações do governo, os problemas do mundo ou as dificuldades dos negócios. Pude comparar.

E assim, sem ambições, sem ódios sem parcialidades, na pura serenidade do espírito que procura a verdade e da consciência que busca o caminho da justiça eu entendo que posso trazer ao debate um depoimento - depoimento sincero e senão convincente; ao menos vivido e desinteressado.
 

*

O orgulho do homem é o traço da personalidade que pode não identificar inteiramente o estadista com a firmeza orgulhosa do país em nome de quem fala.

No nosso caso, seria difícil a quem durante dezenas de anos se identificou com o interesse nacional, não acabar por se sentir, não obstante as contenções impostas pelo seu espírito crítico, um pouco confundido com a Nação: a Nação sou eu. Não o disse por estas palavras, mas quando declarava: «Não tenho dinheiro para...», «o meu interesse está em que...» não era ele pessoalmente o sujeito, nem dele o interesse, mas da Nação confundida com ele próprio numa só e mesma realidade. É, noutro plano, o caso daqueles criados velhos que se identificavam com as casas que serviam: «a nossa casa»... «as nossas terras»... «os nossos meninos»...

Seria difícil, após dezenas de anos, uma vida inteira quantas vezes, não ser assim.

Cioso da sua independência pessoal, que não deixou de o ser quando por acto de livre vontade e consciência de um dever se dedicou ao serviço do Estado, Salazar não o foi menos no orgulho da independência nacional. Este um ponto especialmente relevante. É que Portugal foi algumas vezes o joguete de potências estrangeiras, cuja vontade nos impelia para aqui ou para ali conforme os seus interesses. Fora assim, aliás, que a História de Portugal decorrera desde a implantação do regime liberal entre nós.

A firmeza do Marquês de Pombal, que teve a par de erros clamorosos a firmeza de uma vontade forte que não trepidava, só encontrou equivalente na figura de Salazar. Foi no tempo deste, pode dizer-se, que Portugal teve a confiança em si próprio suficiente para impor uma política internacional sua, que não era a inglesa, nem a francesa, nem a espanhola, nem a americana, nem a russa. Esse orgulho que pudemos ter com ele, já não é conhecido pelas gerações que nos puseram a rastejar por esse mundo fora, de mão estendida. A herança de Salazar, também nesse aspecto, perdeu-se...

Em reunião confidencial com os governadores civis, durante a segunda grande guerra, Salazar expunha o caso das nossas relações com o Reino Unido:
A Inglaterra, tendo atravessado séculos de grandeza e de poder, não obstante a sua doutrina da liberdade e do princípio proclamado de que cada povo se regerá pelas suas leis de independência e soberania, habituou-se a estranhar que outros lhe criem dificuldades ou não acorram prontamente a servi-la, mesmo sem que o solicite. Não compreende de princípio atitudes que a contrariem.
Deveremos nós continuar a usar para com ela aquela política de subserviência a que a tínhamos habituado? Vista bem a lógica das coisas, seria preferível adoptar uma política de prudente dignidade, de honestidade nos processos e de seriedade nos princípios. Inicialmente, tremendas dificuldades daqui nos adviriam, eis uma constante da História.
Mas, sendo subservientes? É certo que facilidades momentâneas nos seriam dadas; contudo, a Inglaterra é um país nobre e, como todos os senhores, no fim tem desprezo pelos subservientes. Nesta condições, antes a política da «nobreza» Perde-se de princípio mas ganha-se no fim, e é este que coroa a obra.

Esta a orientação definida pelo estadista. Diferente é, porém, definir e realizar na prática. Se não é fácil a um governante que não adula as multidões agradar aos governados (sabe-se que governar é descontentar), muito mais o será a um país, cuja voz não ressoa no aço das suas armas, defender com energia e com êxito os seus interesses. Não no faltaram dificuldades nem pressões. Contudo. . .

Um dia em que um embaixador estrangeiro insistia com Salazar no sentido de este aceder a certos pedidos, depois de esbarrar na argumentação do estadista português, saiu-se com esta:
- Mas, sr. Presidente, sem esquadra, sem exército, sem dinheiro, que tem V Ex.a para se apoiar?
E Salazar, calmamente:
- A razão, sr. Embaixador.

Outro apresentara um pedido muito difícil. Salazar recusa. O outro insiste. Discutem vivamente, até que o Embaixador, aliás de país amigo, não se contém e entra pelo caminho das ameaças. Salazar levanta-se e corta bruscamente a conversa:
- Devo dizer-lhe, sr. Embaixador, que não tenho medo de morrer de medo.

A firmeza de Salazar manifestou-se mesmo nas relações com a Santa Sé. A esse respeito deverão os arquivos contar um dia coisas muito curiosas. Que, por exemplo, em duas vezes pelo menos, Salazar esteve na disposição de cortar relações com o Vaticano. O católico praticante não confundia a moeda de César com os direitos da Igreja e, como defensor do poder civil, não abdicava também dos direitos deste.
A primeira teria sido, parece-nos, por causa de questões com a Propaganda Fide.
A segunda dessas crises ocorreu por ocasião da visita de Paulo VI a Bombaim. Os portugueses consideraram ofensiva tal visita, pouco tempo após a invasão violenta do Estado Português da Índia por tropas da União Indiana. Além de um acto de agressão, Roma esquecia que o farol de Goa espalhara a luz do Cristianismo por todo o Oriente. O facto era agravado porque, nessa altura, alguém da Cúria, talvez Monsenhor Alessandrini, fez umas declarações particularmente desagradáveis para nós. Salazar ia responder com uma nota que levaria certamente ao corte de relações. Dois jornalistas que souberam do caso procuraram o Secretário de Estado Paulo Rodrigues e propuseram-lhe a suspensão da publicação da nota por algumas horas. Assim foi e, entretanto, conseguiam que da Cúria viessem a público palavras que contradiziam o sentido das primeiras. Terminou o incidente.

A intransigência do chefe civil, porém, manifestava-se nas coisas maiores como nas menores:
Quando o Presidente Carmona regressou de uma das suas viagens a África, foi encarregada da organização da recepção a Agência Geral do Ultramar. Entre as cerimónias havia Te-Deum nos Jerónimos.
Como habitualmente, Salazar quis conhecer em pormenor todos os preparativos. Quando chegaram ao programa dos Jerónimos, o funcionário da Agência explicou:
- No altar-mór ficam, à esquerda, o Chefe do Estado, num cadeirão isolado. Em frente, no lado direito, o Cardeal Patriarca, num cadeirão igual. Em baixo, os outros bispos ocupam o resto do altar-mór.
- E o Governo?
- O Governo fica no transepto, em cadeiras separadas.
- Não pode ser. O Governo fica no altar-mór, ocupando o lado do Evangelho. Os bispos têm de ficar todos no lado da Epístola.
- Mas eles parece que precisam de todo o altar-mór...
- Eles cabem todos no lado da Epístola. Não ceda nisso.


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1 de Setembro de 1997
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