Um
perfil psicológico de Salazar
Nec semper lillia florent |
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Ao comovido amor de Salazar pelas belezas da natureza, ao sentido musical e arquitectural da prosa escrita, à preocupação da ordem em todas as coisas não correspondia na sua mentalidade uma inclinação de ordem marcadamente estética. Já não se fala no gosto cultivado pelas artes plásticas, onde era contido talvez, como na apreciação da música, pelos cânones do século passado. Era indiferente ao simples arranjo decorativo da sua casa.
Gosta de tudo arrumado. Não suporta a desordem, nem nos móveis, nem nos papéis, nem na conduta, nem na ideias. Na sua modesta casa de aldeia onde reina o espírito da pobreza, este é acentuado pelas imagens ingénuas, algumas piedosas, que pendem das paredes. O mesmo no primeiro andar onde habita em Lisboa, na casa da rua da Imprensa: um velho aparelho de rádio, o telefone, imagens religiosas, bibelots de gosto duvidoso ...
Na medida em que a política é uma arte, foi um artista espantoso. Artista foi também na arte de bem escrever. Respeitava a arte como expressão de beleza, alimento indispensável do espírito. Reconhecia mesmo que Deus ama os artistas. Deus é um grande artista. Mas aqui afastava-se daquele nível de cultura especializada que leva o homem superiormente educado no gosto estético a apreciar com igual interesse a Victória de Samotrácia e o Pensador de Rodin, um quadro de Rembrandt e um desenho de Goya, as alucinações dum Wagner e a quase meditação musical de um Ravel. Este o seu ponto fraco.
Uma das acusações que lhe faziam era ter chamado principalmente os artistas de especialidades mais utilitárias - a arquitectura, a escultura, e pintura decorativas - desprezando os sectores da arte menos subordinada à construção. Tenham ou não razão os acusadores, esse é, porém, um ponto a considerar em análise à obra dum regime e duma época. Atemo-nos aqui somente à personalidade de uma grande figura histórica. Tanto nos basta.
Contou-nos o Almada Negreiros que numa das ocasiões em que Salazar
posava para o escultor Francisco Franco, conversaram sobre monumentos de
Lisboa. Salazar falou do que havia no Campo Grande, aos heróis da
Guerra Peninsular. Muitas figuras, dizia. Muita vida. Movimento.
O escultor sorriu:
- Sim, esse realmente só lhe falta uma corda...
- Uma corda?!
- A gente dava à corda e todas aquelas figuras desatavam a mexer...
Salazar não achou graça.
Quando se instalou na casa da rua da Imprensa, residência oficial
do Chefe do Governo, mandou-lhe o Ministério das Obras Públicas
o arquitecto Raul Lino para combinar a decoração das instalações
oficiais. Lino quis saber:
- Quais são as preferências do sr. Presidente para o arranjo
destas salas?
- Deixo isso ao seu gosto. Arranje como lhe parecer melhor.
- Mas, certamente, há-de gostar mais deste ou daquele estilo,
ou duma decoração, ou duma cor...
- Nada, nada. Isso é com o senhor que é especialista...
E não saiu dali.
Na verdade, Salazar tinha verdadeira indiferença, pela elegância das salas em que trabalhava e vivia. O seu escritório na mesma rua da Imprensa era uma sala ampla, com três janelas largas sobre o jardim. As paredes à volta ocupadas com grandes estantes de madeira clara com portas de rede larga de latão. Uma secretária ampla. Dois maples. Algumas cadeiras. Ausência de preocupação decorativa. Era ali que ele passava o dia e parte da noite. A antecâmara tinha uma mesa, cadeiras e as paredes recobertas de estantes com livros.
Havia no mesmo piso um salão oficial, solene, que só servia para alguma rara visita de cerimónia. Nenhuma nota pessoal aí, a não ser, em moldura, sobre um dos móveis, um retrato autografado: o do Presidente francês René Coty.
O primeiro andar era o da sua residência pessoal. Servia para
comer e dormir.
A mesma sobriedade que lhe bastava a entendia suficiente para os outros.
Em 1929, quando não invadiam ainda os serviços os desejos
de mobiliários janotas e se vivia nas pobrezas da austeridade, foi
apresentada ao Ministro das Finanças uma proposta de autorização
para aquisição de uns maples para qual quer repartição
pública. Despacho:
Os funcionários, no trabalho, sentam-se em cadeiras às
suas secretárias. Os maples convidam ao sono, muito prejudicial
ao rendimento dos serviço!.
Não era, como Vítor Hugo, inimigo da música. Só
não compreendia as dissonâncias da música moderna,
esses ritmos estranhos em que as emissoras de rádio se compraziam
a toda a hora. Um comentário seu:
- Não entendo esta música Há dias falei nisso
ao António Ferro e ele disse-me que exprimia a inquietação
do nosso tempo.
E Salazar estendeu o lábio inferior no jeito de quem ficara
na mesma.