Um
perfil psicológico de Salazar
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Era de um rigor extremo na administração dos dinheiros
do Estado. Melhor dizendo, dos dinheiros de outrem.
Havia pessoas, sobretudo do estrangeiro, que lhe mandavam cheques para
ele aplicar o dinheiro conforme entendesse. Um pouco à maneira do
que se pode entregar ao senhor prior para ele distribuir por quem lhe pareça
mais necessitado.
Esses cheques eram recebidos pela Secretaria da Presidência do
Conselho, registada a sua entrada e depois depositados numa conta de Salazar
na Caixa Económica, que ele esvaziava com o dar uma contribuição
para este colégio, o subsídio a um estudante, os mil e um
socorros a tantas aflições da pobreza envergonhada.
Certo dia um desses beneméritos, salvo erro um português
estabelecido na América do Norte, escreveu a estranhar não
lhe ter sido acusada a recepção do cheque que remetera havia
tempo.
Salazar mandou o chefe do Gabinete verificar o que constava a tal respeito.
Saltou então este facto horrível: alguns cheques recebidos
na Secretaria tinham sido cobrados, mas o valor respectivo não entrara
na conta.
O chefe da secretaria, um velho funcionário, com o qual o Presidente
conversava às vezes sobre um assunto de interesse comum - a criação
de pintos - apanhado pela investigação, caiu de joelhos perante
Salazar, pedindo-lhe perdão pelo roubo.
Salazar foi inexorável: o funcionário prevaricador foi
demitido e tanto o chefe de gabinete como o secretário do Presidente
foram responsabilizados por não terem verificado se os cheques enviados
à Secretaria haviam sido regularmente depositados na conta da Caixa
Económica. Durante meses, os dois colaboradores de Salazar viram
os seus vencimentos, aliás modestos, diminuídos por um desconto
para reposição do valor em falta.
Quando se mudou para a casa da rua da Imprensa, teve a preocupação de mandar instalar dois contadores para a energia eléctrica: um no rés-do-chão, outro no primeiro andar. No rés-do-chão tinha o seu gabinete de trabalho e uma sala mais solene para as visitas que por dever de ofício tivesse de receber. A electricidade aqui era da conta do Estado. No primeiro andar eram os quartos, a sua pequena sala de jantar, os móveis, os pratos, os copos, os talheres comprados com o seu dinheiro. Aqui, a despesa com a energia eléctrica, como aliás a de combustível e das criadas, era de sua conta. Não queria confusões.
Ao visitar o forte de Santo António do Estoril, como possível
instalação para os meses estivais - os médicos haviam-lhe
aconselhado ares marítimos - concordou em ficar, mas quis saber
quanto seria a renda.
- A renda? disse o Ministro da Defesa. Mas isto será a residência
de verão do Presidente do Conselho.
- Não pode ser, respondeu. O Presidente do Conselho tem direito
a uma residência oficial onde o Estado o instala. Mas o Estado não
pode dar-se ao luxo de multiplicar as instalações conforme
as conveniências do Chefe do Governo. Se não pagar renda,
não venho.
Em face da teimosia, foi fixada uma renda que tinha sobretudo valor
simbólico.
O mais curioso é que, estando o forte confiado ao Instituto
de Odivelas, escola de filhas de oficiais, era este o senhorio e, se havia
qualquer problema na conservação do edifício ou nas
canalizações, o Presidente do Conselho era um inquilino exigente:
não demorava uma carta para a directora do Instituto a pedir o arranjo
necessário...
Quando a escritora Christine Garnier ia a sua casa e, de caminho, telefonava
para a família em Paris, Salazar insistia para que telefonasse lá
de casa: não era necessário ir à estação
de correio.
- Mas eu não quero lesar o orçamento do Estado Português...
- Não lesará o Estado. Essas chamadas pagá-las-ei
do meu bolso.
O escrúpulo que tinha com o dispêndio dos dinheiros do
Estado não é independente de um certo orgulho em administrar
dinheiro sem lhe estar ligado. Contou-nos um dia, no seu gabinete, como
tinha sido ali acordada, após longas negociações,
entre ele e um poderoso inglês, dos velhos, dos que eram escravos
da sua palavra, vindo especialmente de Londres para o efeito, a venda do
Caminho de Ferro da Beira em 1949.
- Foi uma venda no valor de quatro milhões de libras (salvo
erro foi esta a quantia que lhe ouvimos) e não houve um papel escrito.
Bastou a palavra de duas pessoas, sem testemunhas e tudo ficou decidido.
Deve ter sido a última vez que no Mundo se fez um negócio
tão importante sob a palavra de dois homens.
Havia nestas palavras várias pontas de orgulho, mas não
seria a menor a que ele expressaria uma vez nestas palavras:
- Hei-de virar e sacudir as algibeiras antes de deixar o poder.
Dos meus anos passados, nem sequer levarei a poeira.
Nos seus primeiros tempos de Ministro das Finanças, tropeçou
um dia no gabinete, bateu com uma perna no canto da secretária e
fracturou o fémur. Teve de ser hospitalizado. Bem quiseram na altura
que as despesas do hospital fossem suportadas pelo Estado. Pois não
era um acidente em serviço? Mas o Ministro não quis. Pagou
ele as despesas do seu bolso, embora para tanto tivesse de pedir o dinheiro
emprestado a um amigo.
Pois este homem tão rigoroso com os dinheiros do Estado era
dum descuido espantoso pelo seu dinheiro pessoal. Quando morreu, encontraram-lhe
nas gavetas, em variados sobrescritos indicativos da proveniência,
notas já fora da circulação, cheques antigos recebidos
do estrangeiro para pagamento de artigos em revistas, tudo no valor de
cerca de quarenta contos, que ele esperaria certamente arrumar quando tivesse
ocasião para isso. Ocasião que nunca mais chegou.
As contas da sua pequena propriedade agrícola - a que ele chamava
«a quinta» - e nos cuidados da qual enterrava todas as suas
economias, conservava-as tal como as recebia da irmã. Limitava-se
a abrir o sobrescrito para ver o que continha, certificava-se de que estavam
pagas e não perdia tempo a examiná-las.
Uma das tais contradições apontadas pelo Cardeal Cerejeira...
Um dia apresentou-se em Lisboa um judeu descendente de portugueses estabelecidos
na Turquia, a propor um negócio relacionado com os diamantes de
Angola. Era acompanhado por um português bem relacionado nos meios
oficiais e o assunto foi levado ao Presidente do Conselho.
A pesquisa e comércio de diamantes de Angola estavam confiados,
segundo um contrato com o governo português, a uma grande empresa
internacional, cujos centros principais eram na África do Sul, em
Londres e em Amsterdão.
O negociador que se apresentava propunha-se constituir uma empresa,
ligada ao rei dos diamantes norte-americano, que se substituiria à
existente, no contrato cujo prazo se aproximava do final. E em condições
mais lucrativas para a província de Angola e com transferência
dos trabalhos de lapidação, para Lisboa.
Salazar tomou conhecimento do negócio proposto e, através
de terceiras pessoas, aliás da sua confiança, deixou avançar
os trabalhos de estudo e concretização de planos.
Foi uma actividade laboriosa em que se misturavam sonhos e ambições.
Quando a companhia, cujo contrato estava em vigor, propôs a renovação
deste, Salazar objectou: - Está muito bem, mas as bases têm
de ser modificadas. Há um concorrente que oferece melhores condições...
E a companhia teve de ceder. O novo contrato obrigava-a a pagar à
província de Angola mais meio milhão de contos por ano e
a montar em Lisboa uma empresa para lapidação de diamantes.
O negócio proposto pelo homem da Turquia, ligado ao americano,
servira-lhe como argumento para forçar o concorrente euro-africano.
Obtido o que pretendeu para o país, o resto não interessava.
Era assim o homem que negociava milhões, sem que estes maculassem
a sua pobreza e o seu orgulho de pobre. Claro que o da Turquia e os seus
amigos não lhe, perdoaram.