Um
perfil psicológico de Salazar
Doutor em Coimbra |
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Quando Salazar se matriculou na Universidade de Coimbra a vida portuguesa atravessava uma das suas grandes crises. O parlamentarismo monárquico, que se arrastou durante dezenas de anos em mecanismo artificial, à margem das ideias-forças da comunidade nacional, atingira o ponto extremo da sua degradação. Ao tentar caminho diferente, o Rei fora abatido por balas revolucionárias. Dois anos após, passados em inquietações e perigos, o regime oito vezes secular fora derrubado e instaurada a República. Mas esta, em vez de se guiar pelo bom-senso, foi arrastada pela emotividade da demagogia em que se integrava uma campanha furiosamente anti-católica.
A Lei da Separação da Igreja e do Estado não foi de separação mas de perseguição religiosa, visando declaradamente, nas palavras do seu autor, a extinção do Catolicismo.
Na Universidade de Coimbra os estudantes católicos reagiram, procurando realizar primeiro uma acção de esclarecimento, a que naturalmente se seguiria a intervenção para defesa da integridade e da liberdade da Igreja. Dominava a ideia desses rapazes a orientação das encíclicas de Leão XIII, em ordem à recristianização de uma sociedade minada pelo materialismo prático da expansão industrial, criando e agravando problemas que estão na origem dos idealismos socialistas.
Salazar era um moço cheio de fé e preocupado com os problemas fundamentais da sua época. Foram os vícios da nossa educação que primeiro e mais fortemente o inquietaram. Daí o terem sido objecto das suas primeiras conferências e artigos na Imprensa.
O ambiente de Coimbra não tardou a mobilizá-lo para o que ele considerava o se dever.
Faz uma vida recolhida. Estuda e dá explicações para se manter e poder ir, todos os fins de semana, visitar a família. Não o encontram nunca nas tertúlias dos cafés e das livrarias, nas ceatas de estudantes, nas serenatas ao luar. Tem um grupo restrito de colegas com quem convive, embora se dê bem com todos. Fora das aulas porém, conhece-o o C. A. D. C. (Centro Académico da Democracia Cristã), onde os estudantes católicos se agrupam, preocupados em defender a posição da Igreja fora e acima das ideias políticas em confronto. Se os ideais republicanos se apresentavam de cariz acentuadamente anti-católico - e não apenas anti-clerical - a reacção monárquica reclamava para si o exclusivo da defesa do catolicismo. Uns e outros pecavam por tentarem identificar-se com o que, por definição, não se vincula a formas de governo, embora seja incompatível com os fundamentos filosóficos em que assentam algumas ideologias orientadoras de estruturas da sociedade.
No C. A. D. C. se encontrou o moço com alguns estudantes que viriam a ser também figuras de relevo na sociedade portuguesa. Entre eles é de destacar o padre Manuel Gonçalves Cerejeira, que se formou em Letras e cursou Direito, ascendendo a professor da Faculdade de Letras, onde ensinaria até ser sagrado bispo e vir para Lisboa, cuja Sé Patriarcal lhe seria mais tarde confiada. Criou-se entre os dois jovens, identificados pela fé esclarecida e actuante e pelos mesmos ideais de acção educativa, uma amizade que durou toda a vida. Chegaram a viver na mesma casa, em regime de «república», com uma criada comum.
Apesar dessa amizade, é de notar que jamais o Cardeal Cerejeira exerceu ou tentou exercer qualquer influência no seu amigo, elevado que este foi à chefia do Governo. Salazar era de uma extrema susceptibilidade na defesa dos direitos e das prerrogativas do poder civil. Não aceitava intromissões, nem admitia que tal pudesse parecer. Quando vieram ambos para Lisboa, não se visitavam normalmente. Era como se estivessem de relações cortadas. Só se reuniam em discreta festa de família, no Dia de Natal.
Em Coimbra haviam trabalhado os dois activamente no C. A. D. C., promovendo a sua reabertura quase dois anos depois do assalto que a associação sofrera em 1 de Fevereiro de 1911, com o subsequente encerramento pelas autoridades, e dando-lhe acção mais intensa, viva e profícua. Entretanto fizeram o «Imparcial», semanário dos estudantes católicos, que principiou a publicar-se em Fevereiro de 1912, sob a direcção de Cerejeira. Aí colaborou Salazar, sob o pseudónimo de Alves da Silva, com artigos notáveis pela preocupação educativa e pelo equilíbrio do pensamento.
Nas reuniões do C. A. D. C. havia sempre, como é natural entre rapazes, um transbordar de opiniões, de críticas, de sugestões, de propósitos. Salazar, magro, os lábios cerrados e o olho esperto, ouvia e deixava-os falar. Por fim, pediam-lhe a opinião. E esta era sempre - e sempre escutada em silêncio - a de quem vira completamente os problemas, os ponderara sensatamente e apresentava a conclusão certa.
Pela mesma época frequentavam a Universidade alguns rapazes talentosos
que defendiam ideias novas na evolução da política
portuguesa e viriam a lançar o movimento do Integralismo Lusitano.
Tinham vindo alguns do sectarismo esquerdista, outros ligavam-se à
irreverência revolucionária de novas formas literárias
e artísticas. Eram de algum modo gente que fazia barulho de mais
para um homem animado sobretudo pela chama da sua vida interior. Mais do
que as ideias afastava-o desse grupo o estilo de vida das pessoas. Ao seu
feitio retraído e meditativo, inclinado mais para a reforma dos
homens do que para
a rotação das instituições, constrangiam-no
aqueles poetas que diziam frases agressivas e se batiam nas montanhas de
armas na mão.
Chegou com alguns a manter amizade. Outros tornaram-se seus inimigos, mas o que não puderam os sentimentos dos homens pôde até certo ponto a força das ideias. Salazar, que não fora integralista, acabou por se identificar com parte substancial da doutrina que antes não aceitara. Não era pessoa que se imobilizasse na teimosia de uma posição tomada. O seu lema, «estudar na dúvida, realizar com fé», correspondia a uma actividade crítica constante, que o levava a corrigir, a modificar, a completar ideias que tivera dantes. Nem sempre o confessava, mas o facto é evidente para quem estude a evolução do seu pensamento político. E não era essa a menor das suas dualidades de estadista.
O movimento do Integralismo seguiu o curso da sua actividade na propaganda e na crítica das ideias e dos factos, pela imprensa periódica, pelos livros, pelas conferências e também nalgumas tentativas de intervenção na evolução política do país. Salazar, pelo seu lado, seria Ministro e Presidente do Conselho, definiria o sistema de política que lhe parecia adequado à Nação. Às vezes, havia ideias coincidentes com as do Integralismo, principalmente com certas sistematizações de José Pequito Rebelo. De resto, pode dizer-se, não houve aproximações com os integralistas da primeira geração. Diga-se de passagem que estes se entrincheiravam numa atitude excessivamente crítica e distanciada da compreensão das realidades em que o homem de Estado há-de agir. É muito difícil que um crítico de ideias entenda perfeitamente um estadista seu contemporâneo. Só o tempo vem revelar a exactidão dos parâmetros em que este se vê limitado.
Os integralistas da segunda geração mais próximos das realidades da acção necessária, esses deram a Salazar, por contrapartida, em grande parte a sua colaboração. E foram eles que influíram na evolução do pensamento político de Salazar no sentido de uma adaptação cada vez maior às constantes históricas da Nação Portuguesa.
Concluído o curso de Direito com a classificação de 19 valores, entrou logo em funções docentes. Estava-lhe aberta naturalmente a carreira do magistério. Em 28 de Abril de 1917 tomou posse do cargo de assistente de ciências económicas. Um ano depois era-lhe conferido o grau de doutor.
Diz-se que, durante o consulado de Sidónio Pais, alguém teria falado ao Presidente nesse rapaz, com grandes qualidades de inteligência e de trabalho, que marcara já nas aulas universitárias. Sidónio, antigo professor de Coimbra, antigo ministro das Finanças, teria pedido a um amigo de Viseu que sondasse o moço professor sobre a possibilidade da sua ida para ministro daquela mesma pasta. Esse amigo escrevera a Salazar e, em resposta, ele agradeceu muito a honra do convite, mas não se sentia ainda suficientemente preparado para poder aceitar tal encargo. Não vimos a carta, mas sabe-se de fonte fidedigna que ela existe em poder de herdeiros do destinatário.
Claro que não podia um professor conhecido como católico, ligado em estudante a actividades do C. A. D. C., deixar de ser alvo de perseguições. Em princípios de 1919, o fervor da liberdade reinante na democracia portuguesa desencadeou uma campanha contra a Universidade de Coimbra, com o pretexto de saneamento do professorado e republicanização do ensino. Entre os quatro professores da Faculdade de Direito de Coimbra, arguidos de manifestarem ideias monárquicas, contava-se o Professor Oliveira Salazar. A resposta deste no processo é um modelo de inteligência serena, de lógica e de ironia. A calúnia desfez-se.
A fama do professor, entretanto, alastrava.
Havia então em Coimbra um professor de Medicina, o Dr. Serras e Silva, católico praticante e homem de rasgada cultura, que recebia todas as semanas em sua casa alguns lentes com suas famílias e alguns estudantes católicos de mais alto nível. Presidia a essa espécie de salão em que se discutia de omni re scibili, a mulher daquele lente, a senhora D. Prudência, que juntava ao primor da educação uma simpatia quase maternal. Apesar de ter filhas ainda pequenas, a ilustre senhora rodeou os dois professores solitários de cuidados verdadeiramente familiares. Dizia mesmo, referindo-se aos dois: «os meus filhos». Foi na verdade para ambos uma segunda mãe. Muito lhe deveram, um e outro, no ambiente geral de carinho que tiveram em Coimbra, para além do respeito conquistado pelas duas inteligências, tão diferentes entre si como o eram as pessoas.
Muitos anos mais tarde, Salazar haveria de referir-se a Cerejeira, nas suas entrevistas a Christine Garnier:
Quando eu era professor em Coimbra, minutava cuidadosamente o meu dia Nunca arredava um móvel do seu lugar. O meu companheiro, hoje Cardeal Patriarca de Lisboa, era o contrário, todo fantasia. Aproveitava a minha ausência para em empurrar a mesa e as cadeiras, deslocar os quadros, e parecia-lhe assim que viera mudar para outra casa. Irritado pelas minhas maneiras metódicas, dizia-me muitas vezes: «És um animal de hábitos!»
Pela sua parte, Cerejeira confessava:
«Censurei-lhe sempre a pontualidade e o espírito de disciplina,
que eu considerava excessivos. És um animal de hábitos! gritava
eu, aborrecido, ao notar que o seu armário estava mais bem arrumado
do que o de uma rapariga ou então ao vê-lo sair a horas fixas
para o seu passeio quotidiano».
A par da obediência aos hábitos, Cerejeira apontava a conhecida
frieza do amigo:
«Conhecemo-nos nos bancos da Faculdade de Direito quando, já
sacerdote, eu a frequentava e ao mesmo tempo a Faculdade de Letras. Não
tardou que as letras me fizessem abandonar o Direito, mas Salazar e eu,
unidos por amizade «fraternal» decidíramos viver em
«república», isto é, em comunidade, dividindo
entre nós as despesas de uma casa. Vivemos juntos de 1915 a 1928,
na Rua dos Grilos, num velho palácio pombalino. A Maria, que já
conhece, tratava-nos da comida. Lembra-me do tempo em que éramos
professores. Um dia, Salazar chegou tarde ao almoço, com expressão
atormentada. Foi na época em que sua mãe estava doente. Cheguei
a recear que ela tivesse piorado. Não, disse ele, a carta
que minha irmã me manda todos os dias, hoje só contém
boas notícias, mas um dos meus alunos não foi admitido a
exame e por forma tão injusta que me afligi profundamente. Lágrimas
de indignação brilharam nos olhos daquele homem de gelo.
Os seus alunos, que amargamente lhe censuravam a dureza, teriam certamente
ficado muito surpreendidos se vissem a sua emoção. A frieza
de Salazar ocultava nessa época, como hoje, uma sensibilidade quase
doentia. Sim, a frieza era já o seu escudo e a sua defesa!»
E Cerejeira continua a apontar os contrastes, com admirável poder
de penetração:
«Salazar seguiu um caminho recto, sem atalhos. Continuou a ser
o homem das grandes coisas e dos pequenos pormenores. Na mocidade, já
se impunha pela sua natureza tão rica, pela sua tenacidade, pela
sua inteligência e perfeito equilíbrio. Reconheciamos-lhe
uma rara objectividade nas discussões. Possuía a arte de
contar com fria ironia mas desdenhava da eloquência. Hoje, como antigamente,
o seu primeiro gesto é de tímido. Hesita antes de se lançar
na acção. Necessita de ser apoiado e depois lança-se.
Nunca vi tantos contrastes na mesma pessoa. Aprecia a companhia das mulheres
e a sua beleza e, no entanto, levou uma vida de frade. Nele, chocam-se
a todo o instante o cepticismo e o entusiasmo, o orgulho e a modéstia,
a desconfiança e a confiança, a bondade mais tocante e por
vezes a dureza mais inesperada».
Um facto dessa vida em «república» que Cerejeira
não contou à escritora francesa:
Antes de a Maria ter ido servi-los, tiveram uma criada de quem Cerejeira,
ao fazer as contas todas as noites começou a desconfiar. Havia umas
inexactidões sempre contra eles...
A casa era administrada, em meses alternados, por um e por outro. Ao
passar o encargo a Salazar, Cerejeira não lhe disse nada. Certamente,
pensou o padre, foi mau juízo meu. Findou o mês e o encargo
voltou a Cerejeira. Salazar não disse nada.
Daí a dias, as suspeitas renasceram. Cerejeira não se
conteve e arriscou:
- Desconfio de que a criada nos engana com as contas.
E Salazar, muito calmo:
- Pelo que vi, também me pareceu.
Daí a dias, Cerejeira diz a Salazar:
- Tive a certeza de que a criada nos roubava. Despedi-a hoje.
E Salazar:
- Morto por isso estava eu...
Assim era a mesma pessoa que, já Presidente do Conselho, quando queria mudar de ministros não lhes dizia directamente. Escrevia-lhes.
Ao Dr. Gustavo Cordeiro Ramos por exemplo, recebeu-o uma tarde, falaram sobre os problemas correntes do ministério da Instrução, assentaram nalguns projectos para o futuro... Quando o ministro chegou a casa, já lá estava uma carta do Presidente a agradecer-lhe muito a colaboração que lhe tinha prestado durante o tempo em que tivera a honra da sua presença no ministério da Instrução. . .
Mário de Figueiredo, que o conhecia desde os tempos do Seminário,
onde fora seu companheiro, referir-se-lhe-ia nestes termos:
«A sua vida é uma linha recta. Hoje como outrora, mantém
aquela forma de orgulho que sempre lhe faz recear secretamente o ridículo.
A prudência que ele já mostrara no seminário encontramo-la
intensificada. Há quem censure o Presidente por hesitar muito tempo
antes de se lançar na acção. É esta antiga
prudência que explica as suas demoras. Adolescente, já sabia
contar com fria ironia mas ignorava o sarcasmo e a troça. Há-de
ter notado que hoje sucede o mesmo. Há nele muita subtileza e muito
pudor.»
Constituiu-se em 1917 o Centro Católico, cujo primeiro congresso se realizou em Braga, em Agosto daquele ano. Não era propriamente um partido, com propósitos de governar, mas uma organização com o fim de intervir na vida nacional no sentido de defender o Catolicismo, respeitando os poderes constituídos. Uma das formas de intervenção era o parlamento. Salazar foi várias vezes candidato a deputado. Chegou a ser eleito pelo círculo de Guimarães em Julho de 1921. Mas foi só uma vez ao parlamento: em 2 de Setembro. Um dia bastara para se desiludir. Voltou logo para Coimbra.
Ao mesmo tempo que preparava escrupulosamente as suas lições e escrevia trabalhos relativos a matérias da sua actividade docente, colaborava com o Círculo Católico. Fez conferências em Coimbra, Braga, Funchal.
Em 1926, triunfante o movimento militar de 28 de Maio, recorreram os vencedores à Universidade de Coimbra para recrutamento de alguns ministros. Salazar foi um dos escolhidos. Mais tarde, várias pessoas se gabavam de ter apontado a Gomes da Costa o nome do mestre para Ministro das Finanças. Não era difícil aceitar, porém, que a ideia tivesse partido de alguns oficiais da guarnição de Coimbra, antigos alunos universitários, um ou outro mesmo formado em Direito e mantido na admiração do professor exemplar.
Em 3 de Junho é anunciado o elenco ministerial com o nome do Dr. Salazar na pasta das Finanças. Vai a Lisboa no dia 4 com dois outros colegas convidados, mas ele só para recusar o convite. Apesar de muito instado para ficar, regressa imediatamente a Coimbra.
No dia 10, ainda sem ministro das Finanças, Gomes da Costa volta a insistir. E outra vez no dia 11. Salazar então aceita.
No dia 12 toma posse, discretamente. Não há discursos, nem apresentação de programas, nem entrevistas. Só depois de conhecido o terreno poderá dizer alguma coisa.
O ambiente político, porém, deteriora-se com a agudização do confronto Cabeçadas-Gomes da Costa. Em 17, os três lentes de Coimbra entregam as suas pastas e voltam à Universidade. Um deles regressará a Lisboa: Manuel Rodrigues. Os outros dois ficam: Mendes dos Remédios e Oliveira Salazar.
Em 19 de Junho - Gomes da Costa telefona ainda a Salazar, a insistir. Em vão. Ainda não chegara a sua hora.
Durante perto de dois anos, limita-se a sua intervenção na respublica ao envio de alguns artigos críticos sobre matéria financeira ao diário «Novidades».