Gilberto Rabelo Profeta
As Coisas Reais e O Homem
página 2
Procuraremos ver o quanto as aparências estão
delimitadas por pontos de vista "a priori". Apenas
uma situação de extrema liberdade permitiria a
absorção da realidade em sua multiplicida-de de
aspectos. O indivíduo que se desse tal liberdade tenderia
a ser confuso quando comparado com a maioria que cultivou e seguiu
uma "Ordem do Mundo". A cultura e o grupamento social
forçam o esquema de interpretação, bitolando
esta liberdade por disseminar o temor por esta confusão,
quando, nesta confusão, ao se ler "desordem"
dever-se-ia ler "complexidade". Sabemos admitir que
uma coisa tenha representações múltiplas
quando tomadas em cultu-ras diferentes, mas somos relutantes
em admitir uma coisa com várias representações
simultâneas para a mesma pessoa. Parece Artaud transformar o "buscar o porque dentro de nós de o mundo apresentar a estrutura que nele descobrimos" em "como se pensa?". Para este problema clássico da filosofia háa respos-ta também clássica - "por meio de categorias, ou pelas propriedades mais gerais das coisas", desde Aristóteles. Para Mauss, cujo pensamento parece perseguir Artaud, as categorias são apenas símbolos gerais, representações coletivas. Artaud dirige seu teatro para levar o expectador a pensar, preocupa-se, portanto, com as singularidades, como se pensa a nível do indivíduo isolado do social. Aristóteles relaciona o nome, a noção e a coisa. O nome se transforma em palavra, ponto de vista expresso, e a noção pode ser vista como a idéia, ponto de vista inominado. Pretende-se amadurecido o pensamento que efetua o corte entre as palavras e as coisas, sendo mágico o pensamento que as confunde. Quando Deleuze(Deleuze) usa os termos "equivocidade/univocidade", demonstra não haver sido realizado plenamente este corte, o pensamento permanece como linguagem verbal. Kristeva(LL), comentadora de Artaud, nos mostra a linguagem, escrita ou gesticulada, "como o único modo de ser do pensamento", vinculando a seguir a linguagem ao processo de comunicação. O modo de ser do pensamento é a comunicação? Apenas o pensamento enquanto produto das relações sociais. Artaud expande "gesticulada/gestos" para comunicar, diretamente ao inconsciente, o que vai além das palavras. Kristeva supõe ser impossível, sem abandonar o terreno do materialismo, imaginar um pensamento extra-linguístico. Deleuze reencontrou tal pensamento no plano espiritual como a "fala que vem de cima", Voz de Deus. No princípio era o Caos, veio a Ordem e se formou Cosmos. Ainda sem abandonar Deus, transcendente como ordem simbólica externa ao homem, Lepargneur(HL IE) criticando ao estruturalismo linguístico e a Lacan, nos dirá que "é a ordem que produz o pensamento", sem abandonar um transcendente, Deus. Erro do estruturalismo pensar que, "dissolvendo-se o sentido, dissolve-se o homem". Lepargneur aceita a língua como um sistema já feito, mas vê a necessidade de se verificar a contribuição individual na sua transformação. Artaud rompe radicalmente com a ordem e com o sentido, dizem os incautos, quando apenas demonstra que, dissolvendo-se a ordem e o sentido, permanece o homem com seus mecanismos fabricadores de ordem e de sentido, transformadores da língua. LOGOS/aglomerado sem formas Leitores apressados de Artaud apenas apontam como negativas as destruições sucessivas. Mauss(FGB 21) ainda o persegue: "a razão se identifica com a ordem do real". Opera Artaud um retorno ao Caos, agora como visão do imediato, "uma parada incompreensível no ar" para se perceber, em Cosmos, o jogo das noções e princípios fundamentais, o jogo das antinomias em ebulição. Vê o mundo de aparências escondendo a desordem, ou apenas uma ordem que sobressai do interior da desordem. Idéia esta sempre posta, a do Caos e Cosmos convivendo simultaneamente, incrustada na idéia do devir do mundo, o mundo sempre vindo a ser. Heráclito já havia colocado esta voz no próprio seio do mundo, julgando que a passagem do Caos a Cosmos não poderia ser obra do acaso, fazendo-se necessária uma lei que regulasse o movimento das coisas. A esta lei deu Heráclito o nome de LOGOS, a que nos referiremos sempre em maiúsculas: "uma lei ordenadora do universo"(AP BS)*. Os estóicos o adotaram em sua visão panteísta: Deus é o mundo, "é Razão, é LOGOS, o ordenador das coisas da natureza e o autor do universo, é destino, necessidade suprema"(JB E). Artaud nos descreve LOGOS como "esta impressão de inteligência espalhada pela natureza exterior" Panteísmo que Artaud vê não como um sistema filosófico, "mas um meio de investigação dinâmica do universo"(AA MR). Os vários panteísmos são visões criticadas e muitas vezes não aceitas sem serem percebidas como a teoria de sistemas disponível a Heráclito, aos estóicos e a Artaud. Artaud usa-o para ver as relações entre coisas reais como Acontecimentos atuando na construção do Destino/Devir do mundo. Artaud quer um teatro de corpos e de gestos. Relaciona gestos a esquemas, e a seguir com "movimento das coisas reais": "um gesto feito pela lava no desastre de um vulcão"(AA TSD): É preciso acabar com as obras primas*; "aplicação de uma lei da natureza onde todo gesto é compensado por outro gesto e toda ação, por sua reação"(AA TSD, O Teatro e a Peste). Procura fazer um duplo da realidade "real" em cena, enxerga, portanto, o processo no sistema de coisas reais. Transformemos as relações/movimentos e esquemas/estruturas entre coisas reais em "gestos". Desvinculando o homem do social, vê Artaud a internalização deste LOGOS heraclitiano e estóico em cada mente - conjunto de aglomerados sem forma - em devir constante. O homem, singular, tem seus contactos com as outras coisas reais, entre elas outros homens e suas sociedades, através de sua constituição biológica que comporta órgãos sensoriais. Estes, estimulados pelas coisas reais, geram acúmulo de informações - IN FORMAS AÇÕES - em sua mente/psiquismo, onde se transformam e se combinam em novas possibilidades. Participa o homem do mundo externo, sistema das coisas reais, tanto pela contemplação - vê a situação - quanto pela ação. A matéria lhe produz muitas e não apenas uma aparência: o homem, singular, pode vê-las todas embora educado para perceber de cada coisa real apenas uma aparência. O Homem, coletivo, inexistente, traz todas as aparências de todos os homens. Para lidar com estas formas/visões internalizadas, tem o homem um mundo de novas formas e abstrações, criações internas. Temos, então, o internalizável, o internalizado - aglomerado sem formas, criando este, por transformações, o conhecimento sobre o mundo, como Mithos e como logos/conhecimento. Em Artaud podemos ver como Mithos as formas/fantasmas que interpomos entre nós e a realidade, tomando ele como conhecimento/ciência apenas aquele conhecimento que se apóia no concreto. Não trabalha Artaud com as noções de verdadeiro/falso/absurdo, mas com conceitos como "o mundo com o qual nos deparamos", o mundo existente; o mundo duplo do real, mundo ausente composto de formas que atuam, pois cópias/simulacros de coisas reais; e de corpos/formas internas que jamais alcançarão a evidência. Faz-nos pensar que tudo que sabemos não é verdadeiro, nem falso, nem absurdo, apenas cópias sempre imperfeitas do real, instrumento para manipulação do real, e faz um teatro para que apreendamos o real por meio de formas que nos levem a que esta manipulação seja adequada. Grita, loucamente, contra as doutrinas e ideologias que congelam pontos de vista, no fundo contra o critério de autoridade. Este critério fará com que as contradições proposicionais se tornem buracos negros, podendo desintegrar a realidade por ele construída, daía repressão exaustiva a quantos neguem a sua validade. Antidogmático como um bom anarquista, Artaud nos faz ver que toda teoria é mero instrumento de leitura do real, devendo nos abrir, sempre, a visão para um mundo mais à frente, desconhecido e mais complexo, que a torne teoria inválida por não mais conseguir explicá-lo. Não nos traz Artaud o critério de utilidade como nasceu no pragmatismo, cada proposição se tornando verdadeira ou falsa de acordo com o sistema de idéias que tenta explicar as coisas reais a que se refiram. Enxerga apenas a dificuldade reinante na cabeça do homem, o comum dos mortais, perante a realidade. Centrando-se no indivíduo, para Jung(JH EPA), "a realidade é composta de tudo que o afete", a realidade subjetiva. Para Artaud, surrealista, o mundo é concreto, realidade objetiva, e existe com e apesar da presença do homem no universo. O que faz Artaud é procurar meios para conciliar o homem com o concreto, ensinando-nos em um teatro, realidade virtual, a lidar com o duplo ou duplos da realidade "real", concreta. Teatro para ensinar a lidar com os objetos(coisas), as formas e os significados que elas geram, os símbolos, os mitos, as palavras, os conceitos e todos os demais instrumentos que criamos para representar o real. Teatro dos corpos, onde tudo que age é corpo, corpos materiais, corpos imateriais, mas "corporais", corpos duplos de corpos materiais, duplos de corpos "corporais", duplos de elementos incorpóreos. Teatro da crueldade, tudo que age é cruel. Teatro pré e per-piagetiano para descentrar o homem de sua visão egocentrada, realidade subjetiva. Teatro para conciliar os três mundos em que vivemos, o mundo externo, objetivo, de coisas reais; o mundo interno, singular, subjetivo, ausente, dos duplos das coisas reais; e o terceiro, mundo cultural, dos duplos dos mundos internos que controla e, muitas vezes, anula o indivíduo. Se Comte fundou uma "religião da humanidade para buscar uma harmonia entre o indivíduo e o coletivo, em um sistema social divinizado, Deus dirigindo-se aos homens, Artaud estudou os significados/significantes para fazer o homem dirigir-se a Deus através de um teatro. Seu Deus é estóico e neoplatônico: o mundo é Deus, panteísmo panpsiquista. Mítico em Comte, mítico em Artaud, objetivos finais idênticos. |
|