plani2.gif (3759 bytes)A PLANÍCIE DE ALÉTHEIA

Contribuição para a (re)construção teórica de uma epistemologia de síntese e para a compreensão dos fundamentos paradigmáticos do agir e do fazer comunicativos em ciência política. (Eduardo Dutra Aydos:Tese de Doutorado, UFRGS, 16/12/98)

INTRODUÇÃO

Eram dez mil anos, no tempo e na linguagem figurada de Plutarco, que transcorriam entre a intuição, formalização e consolidação de um paradigma, como um caminho de acesso ao descortino da Verdade, nas belas e generosas paragens da Planície de Alétheia.

Mas o tempo encurtou, à medida que se avançou no processo de complexificação e condensação da consciência-Humanidade. Dez mil anos podem ter transcorrido, ainda ontem, na curta experiência de alguns séculos do projeto da modernidade, e podem representar hoje - nessa transição da pós-modernidade que estamos vivendo - um desafio a ser encarado no espaço de apenas uma ou duas gerações.

A completação da modernidade, que se projeta no desenvolvimento exponencial da capacidade instrumental-cognitiva da Humanidade - a revolução científico-tecnológica do nosso tempo - ao mesmo tempo que, nos processos simbólicos da comunicação, encurta a distância entre o pensar e o acontecer, entre o agir e o fazer, ao ponto de reduzí-la a uma instantaneidade virtual, nos confronta, também, com uma dramática redução de horizontes para continuidade do padrão de experimentação e êrro, que sustentou nosso modelo civilizatório.

Vivemos a Idade do Conhecimento, que nos alcançou um extraordinário poder de transformação sobre a Natureza e a própria Sociedade, e assim uma enorme capacidade de realização do Bem, do Mal. Mas as questões éticas e políticas não resolvidas da convivência humana, que emergem e se agravam na esteira desse desenvolvimento, nos levam a questionar a sua lógica e sentido. Desigualdades e violência inauditas, têm acompanhado essa evolução e nos ameaçam de um futuro sombrio e regressivo, na ausência de uma perspectiva concreta para o seu enfrentamento.

Diante das ameaças constantes de sofrermos o Mal e da dificuldade crescente de visualizarmos o Bem, corremos o risco de desesperadamente tentarmos consolidar o Neutro, e com ele - o vazio de sentido do descompromisso moral - quase como se fora uma reedição da hegemonia sofística, que erodiu os alicerces políticos da democracia ateniense.

E, não obstante, nos aproximamos céleres de uma nova Era, que poderíamos de-signar como a Idade da Vida, quando o poder de dominação, pelo Conhecimento que já acumulou o Saber e os recursos necessários para a nossa autodestruição em escala global, ensaia agora os primeiros passos para a decifração dos códigos e das leis que regulam os processos genéticos da matéria-vida. Mais uma vez, a Humanidade defronta a promessa e o ônus da sua penetração num território interdito do "sanctus" da Consciência universal.

Não será demais lembrar a insistência com que a ficção científica nos tem alertado - e com realismo profético - para as monstruosidades que nos podem reservar a ultrapassagem de alguns limites de segurança, que o processo civilizatório tem relutado em estabelecer, na perspectiva desse desenvolvimento. A manipulação intencional dos processos gerativos, para a conformação da vida humana aos desígnios de um qualquer poder, e desequilíbrios acidentais, eventualmente irreversíveis, introduzidos nas cadeias genéticas, não podem mais ser reduzidos às dimensões de uma contra-utopia literária. Representam desafios concretos, que amplificam e multiplicam, à sua enésima potência, as razões de angústia, que deprimiam a cidadania dos anos cinqüenta, com o temor de uma guerra nuclear. E nos cobram respostas...

Respostas que não são evidentes; e que são particularmente difíceis de serem elaboradas. Respostas para cuja elaboração o estado atual da arte, no processo do conhecimento científico, parece já opor mais obstáculos do que aportar contribuições.

Até bem pouco tempo atrás, era possível, em escala societária, justificar-se uma atitude precavida diante do mundo que explode fora do nosso controle, dizendo por exemplo que, afinal, sabemos o que não queremos; e que isso já é um ponto de partida, suficiente para nos orientar a ação e assim repousar a consciência. Sabemos hoje, que essa atitude irreflexiva - do agir, que se recusa a obrigação de fazer - é regressiva. Torna-se incapaz de deter o indesejável, que agora já medra fora do seu alcance e, se porventura o atinge, corre o risco de acabar reproduzindo o monstro que internalizou nesse combate: uma contraditória reificação das próprias razões, em perspectiva de contra-mão na história.

Uma das críticas mais amargas que a ciência social enfrenta nos dias que passam, de dentro e de fora do seu próprio círculo de conhecimento, diz respeito, exatamente, à sua dificuldade em oferecer respostas produtivas, às insatisfações que permite detectar e aos estrangulamentos do desenvolvimento da consciência-Humanidade, que permite compreender.

Desde o círculo interior à ciência, constata-se a insuficiência dos modelos teóricos para a elaboração do conhecimento, que foram construídos no processo da modernidade, cuja transição estamos vivendo. Nesta etapa do processo civilizatório, que alguns já querem definir como uma transição ainda mais avançada - da própria pós-modernidade - tornam-se cada vez mais inaceitáveis a derivação e a subordinação implícitas na oposição dualista dessas realidades polares, que alternam sua dominância sobre os discursos da modernidade: a conjuntura não é suficiente para justificar a estrutura; e a estrutura não explica satisfatoriamente a conjuntura.

Sobretudo nos aflige o fato de que as concepções teóricas, que se polarizam em torno da dominante estrutural, derivam os aspectos relevantes da função e da ação sociais, como variáveis dependentes, inexoravelmente submetidas à lógica do "Sistemão" - projetando nisso um conservadorismo que tolhe a criatividade na história. Preocupa-nos, ainda, o fato de que, por outro lado, as concepções teóricas que se constróem em torno de uma dominante conjuntural derivam os aspectos relevantes da estrutura, como produtos imediatos dos sucessos da ação, recaindo destarte na violentação das condições objetivas, que enquadram os limites da sua possibilidade histórica, e projetando na sua esteira as doenças infantis do ativismo político mais inconseqüente.

Questiona-se, fundamentalmente, o antagonismo das concepções de mundo, que se submetem à polaridade lógica do sujeito e do objeto, da ação e da estrutura, do voluntarismo e do determinismo, no equacionamento dos problemas teóricos e práticos da vida política. Liberalismo e marxismo constituem macroparadigmas desse perspectivismo inconciliável, o qual se reproduz, no entanto, no espaço interno de cada uma destas duas tradições da teoria social, até porque são complementos indissociáveis, um ao outro, na sua permanente e irresolvida oposição. E, não obstante a consciência aguda dessa crise, que a Academia tem manifestado, são ainda poucos os espíritos científicos que têm tido a ousadia de trabalhar além-limites destes paradigmas que se anulam e se esgotam.

Por isso mesmo, o primeiro aspecto a ser ressaltado, na originalidade do trabalho que ora apresentamos à crítica, reside exatamente aqui. Essa tese enfrentou, clara e decididamente, a ruptura das amarras que têm submetido a produção teórica nas ciências sociais à hegemonia do pensamento marxista ou liberal. Vivenciamos, assim, como um desafio singular e indescartável, esse momento crítico da pós-modernidade em que "a biografia cobra do homem de ciência a ultrapassagem de mais um limiar - que talvez fosse adequado preparar cum grano salis - pelo tempero do sal da ironia, que o conselho sábio de Lefebvre nos oferece - eis que: Melhor do que o discurso sério, ela liga ao "mundo" da linguagem, ao discurso que se quer total e nunca consegue, o que vive aquém e além da linguagem e do discurso. (Lefebvre 1969, pag. 57)"

De fato, à medida que avançamos no sentido da transposição dessa última fronteira, onde o discurso acadêmico se liga ao mundo da linguagem, alcançamos um nível de aprofundamento e uma amplitude de investigação que nos propõem o descortino dessa terra de ninguém, onde a ironia do destino e o interesse da razão nos têm jogado aquém e, no entanto, para muito além do que autorizam a linguagem e o discurso correntes nas ciências sociais. Pelo que, também, nos obrigamos a enfrentar todo um conjunto de dificuldades, que representam as limitações desse trabalho - as quais, temos consciência, afetam, não apenas o aprofundamento possível dos temas abordados nessa tese, mas até mesmo a sua imediata assimilação pela comunidade acadêmica.

Introduzimos, numa discussão sediada na esfera disciplinar da ciência política, um vasto conjunto de conceitos e axiomas, que raramente são trabalhados no seu dia-a-dia, embora estejam subjacentes em todo seu esforço de auto-reflexão comunicativa. Nos obrigamos a um trabalho deveras árduo, para identificar, compatibilizar e sistematizar esses instrumentos teóricos, de forma inédita no estado da arte, perseguindo sempre um duplo objetivo: a consistência interna do modelo paradigmático em construção e a emulação da sua capacidade de resposta às questões substantivas, que a vida política nos cobra, como os enunciados de um compromisso ético temperado pelas exigências da sabedoria prática.

Utilizamos, com inusitada freqüência em estudos dessa natureza, o recurso da análise morfológica - a utilização de gráficos, que se incorporam ao argumento, pela coercitividade lógica dos seus espaços de propriedade - buscando nisso o enquadramento heurístico que direciona essa investigação e uma demonstração mais clara da correspondência entre os conceitos trabalhados. Foi, exatamente, essa constrição assumida no plano metodológico, que nos impulsionou ao desvelamento de um fundo comum de Verdade, que é denotado pela convergência teórica de autores tão distantes como Platão e Foucault, em áreas tão distintas como a ciência política e a psicologia social, em tradições culturais tão opostas como o Oriente e o Ocidente. Essa Verdade arcana e partilhada, da forma como se torna palpável em nossa elaboração, se constitui, num segundo aspecto relevante dessa Tese: uma concepção de mundo que se propõe resgatar a dignidade dos Saberes, que subjazem à divisão estrutural do conhecimento na Ciência, na Filosofia, na Arte e na Religião.

Talvez aqui se tenha experimentado, de uma maneira sui generis, a segunda ruptura epistemológica propugnada pelo mestre português e universal Boaventura de Sousa SANTOS [1989]: uma ruptura da ciência consigo mesma, em busca de um novo conteúdo de verdade no senso comum da vida. Advirta-se que esse novo senso comum, não é aquele constituído pelo imediatismo de uma opinião irrefletida, mas, bem ao contrário, constitui-se pelo resgate de uma reflexão profunda, cujos conceitos e axiomas são convergentes, num espaço aquém, mas também muito além, da linguagem comum da ciência.

Reconhecemos que essa segunda ruptura apenas engatinha. Seu processo é lento e a direção da sua consolidação é ainda, num horizonte mais amplo, imperscrutável. Por isso mesmo, essa Tese constitui-se em campo aberto para o debate necessário e a revisão sistemática dos seus próprios postulados. Ao longo da sua elaboração, permanentemente, adotamos essa atitude e, inúmeras vezes, nos surpreendemos nesse fazer. Adentrando novos campos de investigação, sentimos a necessidade de voltar sobre os espaços já percorridos, e reconstruir as relações entre conceitos e axiomas que, antes, pareciam já definitivamente clarificados e totalmente estabilizados no modelo paradigmático. E nisso, não fizemos mais do que confirmar a abertura e a circularidade do paradigma em construção. Do que emerge, também, uma convicção muito precisa: que a arquitetura planimétrica de um construto dessa natureza, certamente, ultrapassa os limites de uma tese doutoral e as possibilidades de elaboração de um investigador isolado. Da nossa parte, fizemos o melhor possível. Certamente há muito ainda que retornar sobre os nossos passos; há muito que precisar e desenvolver na perspectiva que a nossa intuição descortinou. Invocamos aqui a generosidade do tempo e a inflexibilidade da crítica, que representam, nesse sentido, a melhor expectativa de recompensa do autor.

E assim, por tudo que resta, ainda, por esclarecer, devo mencionar entretanto que essa Tese não pretende constituir-se num tratado de história da filosofia ou das concepções epistemológicas que aqui são abordadas e contrastadas.

Seu enfoque não é descritivo-analítico. Trata-se, ao contrário, de uma tentativa de síntese, pelo que se requer graus de liberdade, relativamente à ancoragem originária dos próprios conceitos que se manipula. Porque, também, ao longo da sua elaboração, o tratamento não é monográfico; não se pretende esgotar nas citações o pensamento dos respectivos autores - ou, mesmo, polemizar as suas concepções enquanto tais.

Toda a referência serve, apenas, ao intento de ilustrar o conteúdo do texto, relevando a conseqüência da sua própria concepção e dos seus próprios fundamentos. As citações, no entanto, impõem-se e valem pelo crédito intelectual, que se reconhece aos respectivos autores, e pelo mapeamento, que permitem esboçar, das conexões heurísticas dos conceitos aqui elaborados.

Na lição de Aristóteles, entendo que o desvendar de um tema ao conhecimento, impõe ao seu pretendente o compromisso da sabedoria prática: de encarar esse processo, como um esforço de auto-conhecimento; de vivenciá-lo em suas conclusões, da forma mais consistente possível; e, nesse esforço, de buscar sempre o referencial mais amplo dos fatos e dos conceitos, que o enquadram no ambiente dessa totalidade dinâmica, que constitui o mundo da vida.

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"A Planície de Alétheia"
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 PRÓLOGO e INTRODUÇÃO * - 177 kb.

PARTE I - Considerações sobre a conseqüência epistemológica de um novo paradigma da Filosofia Primeira PARTE II - Epistemologia de Síntese Parte III - Especificações do modelo paradigmático - Estudos de epistemologia especial: ciência política, psicopatologia e religião
1.Sobre a compreensão participativa da epistemologia em situação de sala de aula* - 312 kb 4. Sobre a convergência teórica na formulação paradigmática da epistemologia de síntese* - 233 kb 7. Sob o Signo de Janus... a emergência da síntese epistemológica em ciência política (P) - página html.
2. Sobre a crise e reconstrução paradigmática na epistemologia contemporânea* - 184 kb 5. A conformação dos saberes na síntese epistemológica* - 501 kb 8. Síndrome de MaKBeTh - a formação da consciência moral e o paradigma da patologia do poder (P) - página html.
3. Sobre a fundamentação paradigmática na epistemologia de síntese* - 141 kb 6. O resgate de uma cosmovisão mitopoética na epistemologia de síntese* - 642 kb 9. O paradigma ancestral na epistemologia da religião (P) -arquivo PDF. - 402 kb.
7. PÓS ESCRITO: Uma referência necessária sobre o diagrama heurístico na figuração do modelo paradigmático da epistemologia de síntese* - 78 kb
(P) Versão preliminar, dos volumes II e III da trilogia: Epistemologia de Síntese. Atualmente em fase de revisão e complementação. Uso restrito para debate com o autor, pede-se não citar ou reproduzir.
BIBLIOGRAFIA* - 37 kb
* Versão revista em 26/06/2000 - No prelo, sob o título: "A PLANÍCIE DE ALÉTHEIA: Contribuição para a (re)construção teórica de uma epistemologia de síntese." Coleção Academia-Humanas, vol.nº 4 - IFCH/Editora da Universidade/UFRGS.

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