Um perfil psicológico de Salazar 

A vida só vale para servir

Quem era Salazar ? 
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A VIDA SÓ VALE PARA SERVIR

Fundamental na personalidade de Salazar é, sem dúvida, a seriedade. Era um homem profundamente sério, para quem a vida tinha um sentido transcendente. Daí que a sua vontade o determinasse dentro da coerência com tal sentido na firmeza dum dever a cumprir. Mais do que uma vez nos seus discursos ele acentua essa obediência ao imperativo do dever.

Logo no discurso de posse como ministro das Finanças, dirigindo-se ao Presidente do Ministério:
Não tem que agradecer-me ter aceitado o encargo, porque representa para mim tão grande sacrifício que por favor ou amabilidade o não faria a ninguém. Faço-o ao meu País como dever de consciência, friamente, serenamente cumprido.
Nestas palavras, cujo rendimento à verdade repele abruptamente o estilo convencional e falso das relações sociais, reflecte-se a noção de seriedade, cuja radicação ele próprio definira na resposta em processo de sindicância aos professores de Coimbra em 1919, recordando a sua
actividade de estudante:
Vivia absorvido na minha ideia e na minha obra. Quem não tem um grande pensamento ou um grande afecto a encher-lhe a vida, não sabe decerto o que isso é. - Eu era afinal um rapaz com uma ideia séria.

Numa época como a nossa, em que se tem como objectivo principal na vida ser feliz, realizar-se cada qual, em felicidade, Salazar entregava-se ao cumprimento do seu dever, precisamente aí procurando realizar-se. A escritora francesa Christine Garnier perguntou-lhe um dia:
- Que representa para si a felicidade?
E ele volveu-lhe naquela voz que tanto a impressionava, «uma voz lenta, calma, paciente, uma voz muito doce atravessada de imprevisto de clarões de aço»:
- A felicidade é um estado de satisfação da alma, de harmonia total entre as nossas aspirações e as realidades da vida. Parece-me mais fácil chegar à felicidade pela renúncia do que pela procura e satisfação de necessidades cada dia mais numerosas. A procura da felicidade implica, creia eu, um estado de insatisfação contínua.

Já nas conversas com António Ferro este lhe citara o paradoxo de Gide: «A felicidade do homem não está na felicidade, mas na aceitação dum dever».
Continuando no colóquio com a francesa, Salazar passa a outro plano:
- Esta ideia de que a felicidade não pode ser senão individual é para mim duma importância primordial. Instalam-se ilusões perigosas no espírito dos dirigentes de povos que desprezam ou desconhecem esta verdade. Temos visto certos Estados, certos regimes, sacrificar totalmente o Homem, que representa sobre a Terra o único valor de Infinito, ao objectivo inacessível da felicidade nacional.

A renúncia de Salazar foi, pode dizer-se, total. Ele o declarou: Quando se não deu tudo, não se deu nada.
O moço que deixou o curso do seminário por não sentir vocação para a vida sacerdotal e entender até que podia exercer como leigo mais proveitosa acção ao serviço de Deus, visava claramente a carreira do professorado. Os seus escritos de estudante, ainda no liceu, e ao depois na Universidade, são marcados pela preocupação pedagógica fundamental:
Eu trabalhava ao tempo (em Viseu) num colégio que era uma tentativa de adaptação a Portugal dos métodos e fins da educação inglesa, já introduzidos e começados a praticar em França na École des Roches de E. Demolins, copiado de modelares escolas inglesas ...e estava convencido de que a superioridade do anglo-saxão, tão retumbantemente comprovada no decorrer da guerra europeia, era devida a certos princípios fundamentais da sua educação.

Gostava de ensinar, afirmava. Ensinou no colégio de Viseu, ensinou aos seus explicandos em Coimbra e depois na Universidade, ensinou a ler a sua governante e as pupilas desta. E na maioria dos seus discursos, que são, afinal, orientados na intenção do entendimento dos factos, despidos de todos os artificialismos da tradicional oratória política, proferidos pausadamente e com o dedo indicador a marcar paternalmente um ou outro passo mais significativo, não vemos nós aí sobretudo lições magistrais?

Os acontecimentos de importância encara-os sempre numa perspectiva superior, no encadeamento do processo histórico. Preocupa-o o momento em que tem de actuar, ou que é obrigado a sofrer, mas não deixa nunca de o encarar na linha em que está inserido. No passado e no futuro. Aqui, procura antecipar-se ao tempo.

Sente que os grandes problemas do homem se situam, tanto na compreensão quanto na extensão, em dois abismos de grandeza ilimitada: o infinito do tempo e o infinito do espaço. Daí a sua preocupação em entender, por um lado, e por outro estudar a impulsão necessária para agir, procurando superar tanto quanto possível as contingências, pela força exclusiva da sua inteligência e da sua vontade.

Parece às vezes situar-se acima do tempo, que de certo modo chega a desprezar: - Que importa o tempo dos relógios, onde os minutos são todos iguais? Certo, o tempo é necessário para decantar o resultado de certas experiências, para se colherem os frutos de outras, para formar as elites necessárias à realização de obra séria. Como é necessário na terra para fazer germinar a semente, crescer a planta, rebentarem as flores, amadurarem os frutos. Acima desta temporalidade, porém, há os abismos do infinito e estes não deixam de estar presentes no seu pensar, denunciam-no, quando o homem é surpreendido, calado, a olhar as estrelas, longamente, ardentemente.

Não faltou quem o visse como a uma espécie de yogue superior, mestre de práticas estranhas em que as inércias físicas são dominadas pela força do espírito. As mãos, muito brancas, grandes, másculas, sempre a moverem-se em gestos expressivos, por vezes com o indicador temeroso a avançar, são frias. Frias por vezes como as mãos de um morto. Antes da doença e de se haver modificado, como todos os seres que um dia roçaram a morte, já uma vez Christine Garnier lhe dissera:
- O senhor está morto!
E ele respondeu com uma frase estranha:
- Há seres que não são dotados para a vida...

Mas foi ele mesmo que, na doença de José Nozolini, que se considerava moribundo e não queria já forçar-se a tomar alimentos que lhe repugnavam, foi ele mesmo que lhe afirmou:
- Olha Zé, só morre quem quer!

Fala por vezes como alguém que tenha efectivamente vencido as barreiras do tempo e da morte. Um contemplativo que encontrou na serenidade do pensamento, acima da vida, o estado de pureza dos grandes místicos? Nem a taça dos prazeres, nem os cilícios da mortificação, e apesar disso uma alma que superou a agitação das contingências terrenas? Algo talvez como um grande budista?
Ele explica, simplesmente:
- Não. Um pobre cristão.
Um pobre cristão para quem a vida não é em si mesma um fim:
- A vida só vale para servir. Ela é uma coisa séria, com um certo conteúdo, há-de ser realização tão perfeita quanto possível de um certo ideal.

Podiam as coisas sair-lhe ao contrário do que pretendia. Podia mesmo o resultado do seu trabalho não corresponder às esperanças que nele pusera. Mas não se pode dizer que o surpreendesse a adversidade ou que lhe minguasse a esperança. A inteligência abrira-lhe o leque das perspectivas possíveis. Ele trabalhara com afinco e com fé no sentido que se lhe afigurara melhor. A contrariedade podia apenas fazê-lo sofrer. Ele previra tudo. Quase previra o seu fim quando escreveu, em Fevereiro de 1965:
Seja qual for a evolução dos acontecimentos, não pode haver dúvida de que é nos sete anos a seguir que, por imperativos naturais ou políticos, se não pode fugir a opções delicadas e, embora não forçosamente a revisões, à reflexão ponderada do regime em vigor. E é nas mãos do Chefe do Estado que virão a pesar as maiores dificuldades e da sua consciência que dependerão as mais graves decisões.


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1 de Setembro de 1997
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