Um perfil psicológico de Salazar 

Contraditório, desconcertante

Quem era salazar ? 
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CONTRADITÓRI0, DESCONCERTANTE

É uma personalidade complexa, cheia de contradições em si mesma, que as não tem na lógica inexorável do seu procedimento.

Um homem simples, que ama as coisas aparentemente menos sofisticadas da existência: a vida calma numa casa pobre, entre flores de cores discretas (nunca as flores de cores violentas!), ouvindo o cantar das águas que se despenham em cascata pela encosta atrás da casa, ou que vão caindo nas fontes. A sua cozinha é simples e quanto a vinho, apenas o prova. Não tem ambições de mando, nem de riqueza, nem de prestígio social. Nas suas lições parte sempre do caso simples, do exemplo comezinho para chegar à definição e à critica do princípio abstracto. Tem alguns, poucos amigos do tempo da juventude, e não se lhe conhecem inimigos pessoais.

Na formação do seu espírito predominou a organização racional do tomismo, haurido nos ensinamentos do seminário e desenvolvido na mesma linha do pensamento claro, ordenado e exaustivo do Aquinense. O estudo das ciências jurídicas e económicas enriqueceu essa estrutura inicial. As ciências sociais patentearam-lhe a sociologia de Demoulins, que o levaria a aceitar a variabilidade dos regimes políticos em função do tempo e do lugar. Este ponto de vista foi corrigido mais tarde, em parte pela leitura de Maurras. Não porque aceitasse a politique d'abord na extensão que os detractores quiseram atribuir-lhe (e que não estava de facto no pensamento do filósofo da Action Francaise), mas porque reconheceu a importância real do factor político. Onde, porém, mais se aproximou de Maurras foi na própria realização da arte política, na aceitação implícita do empirismo organizador, que faz do maurrasismo uma verdadeira doutrina científica da acção política pela experiência social.

Não se perde nem procura arrastar os discípulos nos emaranhados das grandes ideologias que se contradizem, quantas vezes, a si mesmas. Entende que o essencial para o homem é pensar bem, porque nós não podemos saber tudo. A verdadeira cultura não pretende mobilar um espírito mas formá-lo, ensiná-lo a observar bem os casos que se apresentam e a extrair deles todas as lições que encerram. O essencial não é saber as coisas, mas saber raciocinar sobre elas.

Ao lado desse homem simples e lógico, há uma personalidade que vive para além dos limites marcados pela razão. Pressente-se na sua inteligência algo de misteriosamente subtil. Responde a objecções em que estamos a pensar, sem as termos ainda formulado. Antecipa-se-nos. Dir-se-ia dotado de um certo poder divinatório ou de uma estranha capacidade telepática. É um intuitivo, cuja compreensão capta pensamentos ainda não expressos. Talvez tenha, como alguém o disse, um sexto sentido, uma terceira visão de profeta.

Tem olhos doentes, que o obrigam em certa altura da vida, já ministro, a conservar-se, algumas horas, durante o dia, num quarto às escuras, sob perigo de descolamento da retina e, contudo, lê com uma rapidez incrível. Uma folha de papel dactilografada, percorre-a com a vista, velozmente, de alto a baixo, não vemos que leia linha a linha, e no entanto  - leu tudo. Num relatório ou num jornal encontra ao primeiro olhar a frase mais significativa ou de maior interesse. Era já assim antes de serem conhecidas entre nós as técnicas de leitura rápida.

Tem a capacidade rara do que ele chama uma espécie de desdobramento do espírito, que lhe permite, ao mesmo tempo, atender um dos seus colaboradores e ler um documento, falar ao telefone e tomar notas sobre assunto diverso.

Detesta a agitação febril, a pressa característica da vida moderna. Na sua casa, quer no campo quer na cidade, respira-se a paz silenciosa dum claustro. Nunca se apressa, nem se precipita, nem corre. Todavia, gosta de vencer as distancias, em automóvel, a grande velocidade. Sente uma alegria quase infantil quando o carro em que viaja consegue avançar e fugir ao que transporta a sua guarda pessoal.

Tem reacções frequentemente inesperadas. Um dia o secretário conta-lhe que numa corrida realizada nesse dia no Campo Pequeno o toureiro Manuel dos Santos matara um touro na praça, o que era rigorosamente proibido pelas leis portuguesas. O matador aliás foi preso e julgado.
Salazar limitou-se a perguntar:
- E ao menos matou-o bem?

Dir-se-ia haver da sua parte malícia irresistível em encarar os factos de ângulo diferente do esperado pelo interlocutor.

A Emissora Nacional emitia todas as semanas um quadro satírico da vida lisboeta, o qual tinha por personagens o marido, a mulher e a sogra. Era um programa com muita graça, valorizada pela interpretação do grande actor que foi Vasco Santana.
O marido, ao referir-se à sogra, tratava-a sempre por aquela santa! A tal ponto o programa e a expressão se popularizaram que passou muita gente a designar as sogras por aquela santa!, o que principiou a irritar certas pessoas - nomeadamente as sogras. Começaram a chover reclamações na Emissora. Que era um programa atentório da dignidade do lar, dissolvente da família. Que já as crianças chamavam às avós aquela santa!
António Ferro, ao tempo presidente da direcção da Emissora, começava a andar pouco tranquilo com a campanha.
Uma senhora da família do Dr. Manuel Múrias pediu-lhe que publicasse no Diário da Manhã a carta de um leitor a queixar-se do programa. Múrias aquiesceu. Mais carta de um leitor, menos carta de um leitor, não tinha importância nenhuma!
Mas teve. Ao ler a carta no Diário da Manhã, António Ferro pensou que o Múrias não a teria publicado se não houvesse qualquer indicação do Dr. Salazar. Ou teria sido ele mesmo que a sugeriu...
E apressou-se a mandar suspender o programa.
Dias passados, vai a despacho ao Presidente do Conselho e este, a alturas tantas, diz-lhe:
- Já me ia esquecendo de lhe falar nisto... Foi o senhor que mandou acabar com aquele programa do Zéquinhas e da Lélé, na Emissora?
António Ferro sucumbiu: Agora é que é! Agora é que vou ouvir uma lição sobre a defesa da família!... E lá se desculpou:
- Sim, senhor. Tive de acabar. Estava a criar mal-estar nas famílias. Recebi reclamações...
O Presidente encolheu os ombros:
- Ora, ora! Foi pena ter acabado. Tinha muita graça e o povo gostava tanto! Depois de uma semana de trabalho é agradável ouvir assim um programa disparatado e divertido. Sabe que nós não podemos ir sempre atrás de protestos. Há gente que protesta por tudo e por nada. Foi pena...

Pode dizer-se que era um homem sem preconceitos intelectuais, mas com preconceitos sociais. Na apreciação dum facto, duma ideia, duma pessoa, a inteligência dele agia em liberdade, sem limitações de compreensão. Nas relações com pessoas, talvez por influência do clima de respeito na sua vida familiar, na hierarquia do seminário, no formalismo académico da Universidade e do meio de Coimbra, tinha preconceitos. Um escritor consagrado, ou um professor universitário, por exemplo, sobretudo se eram idosos, gozavam do seu respeito. Do mesmo modo os governantes dos povos, mas aqui já entrava o seu rigoroso sentido de hierarquia social. Não se abstinha de criticar, de apontar defeitos de quem quer que fosse - mas entre amigos e sem rancor. As vezes estranhando os defeitos. Outras compreendendo. Outras divertindo-se com eles.

Falando uma vez acerca do então presidente da República do Brasil, João Goulart, dizia-nos:
- É um homem espantoso. Não lê. Isto que é normal em qualquer pessoa, ler um livro, não é com ele... Não lê!

Mas não admitia que se publicasse qualquer palavra ofensiva contra o Chefe da Nação fraterna.

Doutra vez, condenando o facto de um periódico se referir sistematicamente com desagrado ao presidente Ben Bela da Argélia, chamando-lhe o tiranete de Argel, dizia:
- Claro que ele é um patifório que não merece consideração nenhuma. Mas merece-a o cargo que exerce. E nós que defendemos a necessidade da disciplina, não devemos quebrá-la nem sequer com os que nos atacam.

Por essa razão, mandou suspender pela Censura uma biografia de Staline, muito dura para este, que um jornal nacionalista, pelo princípio dos anos 40, andava a publicar em folhetins. Staline era um chefe de governo...

A este sector de preconceitos se ligavam também as suas limitações indumentárias. Seria incapaz de um arrojo de vestuário. Um chapéu diferente, uns sapatos de feitio moderno, um fato que não fosse de corte discreto - ser-lhe-iam inadmissíveis. Tinha um janotismo especial nas gravatas. Mas teimou sempre em usar botas, não só porque estas lhe pareceriam mais cómodas, mas porque mudar de género de calçado poderia parece algo de renegação a si próprio. E na fundo entenderia que os que trabalhavam com ele também deviam ser assim.

Um dia, certo jovem subsecretário foi trabalhar com o Presidente, na casa da Rua da Imprensa.
À saída, Salazar, que o acompanhara até à porta, disse-lhe:
- Ponha já o seu chapéu, por causa do frio.
- Não uso chapéu. Sr. Presidente.
- Não me diga...
- É normal agora os homens andarem em cabelo
- Mas não está bem, sr. Subsecretário. Não está bem. Deve andar com um chapelinho ...
Diziam depois as más-línguas que, ao voltar outra vez à Rua da Imprensa, o moço levava chapéu. Mas parece que não.

Sempre os amigos o conheceram contraditório. Ainda estudante, altamente classificado, fez o elogio do cábula. Foi num dos artigos do «Imparcial», depois de condenar a planturosa vastidão dos programas escolares:
E por tudo isto que paradoxalmente o cábula exímio das nossas escolas não tem mostrado, após o tê-las abandonado, inferioridade aos outros. Ele fugiu dos livros; fixou bem duas ou três ideias que lhe pareceram fundamentais; viu-as aplicadas na sua vida livre e variada de todos os dias, conversou-as, discutiu-as, e em volta arquitectou o pequeno mas sólido edifício dos seus conhecimentos; estudou menos, viveu mais; e, enquanto os outros todos viam, passados os actos, esvaziar-se-lhes estranhamente o cérebro, o cábula riu muito, cheio de alegria e saúde: ao menos ele sabia alguma coisa. O cábula é geralmente a afirmação clara de que a máxima parte dos conhecimentos adquiridos na escola são perfeitamente inúteis, e de que a superioridade pertence aos que, estudando pouco nos livros das aulas ,aprendem a ler muito no livro da vida. Eu sinto uma simpatia imensa pelo cábula inteligente das escolas portuguesas!

Depois, professor catedrático e estadista, sempre respeitoso da aristocracia da borla e capelo, não confundia os preconceitos sociais com os intelectuais.
A um jornalista, que fora estudante universitário e que um dia lhe expunha qualquer problema, Salazar contrapôs-lhe:
- Pois é. É o preconceito universitário que o senhor tem, a deformar-lhe a compreensão do caso!
Pareceria o sentido desta frase em desacordo com o homem que escolheu para seus colaboradores como ministros e em altos postos do Estado alguns colegas seus nas cátedras de Coimbra. A verdade, porém, é que Salazar não dispunha de outro campo de selecção que ele conhecesse E se é certo que pertencera ao Centro Católico e que estava ligado por amizade a alguns dos seus chefes, não o é menos que ele queria realizar uma obra nacional e não de facção, ainda que esta tivesse a característica fundamental de defesa da Igreja, sem quaisquer intenções de conquista do poder. Além disso não queria confusões nem intromissões. Ninguém teve como ele em Portugal o sentido da separação da Igreja e do Estado. Dos seus amigos do Centro Católico pode dizer-se que só um, Joaquim Diniz da Fonseca, apesar da amizade que os ligava e do grande respeito que lhe tinha, ocupou um lugar no ministério, e mesmo assim ao nível de subsecretário.

O estadista frio e distante das aparências era na intimidade de uma afabilidade extrema. Impressionava, por exemplo, as pessoas que ele recebia à noite, no inverno, o cuidado com que as convidava a sentar num maple defronte do seu e a insistência para que cobrissem as pernas com o cobertor que estava ao lado. Salazar entretanto começava a ajeitar o seu:
- Ponha a manta bem sobre os joelhos, que está bastante frio.

Gostava mais de ouvir que de falar, sobretudo quando se tratava de pessoas que não conhecia ainda bem. Com os mais familiares conversava muito, expunha as suas opiniões, tinha comentários de humor. E, era curioso, havia naquele homem, embrenhado em tantos e tão complexos problemas nacionais e internacionais, um conhecimento por vezes pormenorizado de coisas pequenas da vida portuguesa. Tinha, a par das sua exposições e dos seus raciocínios luminosos, umas curiosidades de velha bisbilhoteira. Isso, que parecia uma inferioridade, era talvez uma superioridade. O homem que só vê a vida nas grandes perspectivas da História e se alheia do pequenino Mundo que o rodeia, cria uma medida que o aliena da própria realidade humana.
E daí, talvez fosse uma maneira de descansar das coisas maiores, distraindo-se com as menores.

Expunha fluentemente, sempre com a preocupação pedagógica de fazer entender exactamente a linha do seu raciocínio, tanto a sós com o seu interlocutor como nas reuniões restritas. Já assim fora aliás nas aulas em Coimbra; assim era nos conselhos de ministros. Um expositor luminoso.
Há duas exposições suas em conselhos de ministros que os assistentes afirmavam terem sido especialmente impressionantes.
Uma delas foi sobre a barragem de Cabora-Bassa. Havia ministros que discordavam da realização de tão grande obra, onde haveriam de ser investidos capitais que excederiam as nossas medidas financeiras. O ministro das Finanças, Ulisses Cortês, era um desses discordantes.
Salazar deixou-os falar e expor as suas razões. Depois, serenamente, pegou em cada um dos argumentos, analisou-os discutiu-os, abandonou-os e traçou o quadro geral das motivações que nos obrigavam àquela obra colossal. Terminada a sua fala, não havia nada a objectar. O assunto estava esclarecido e resolvido.

Outra exposição memorável foi num dos seus últimos conselhos de ministros, ao apreciar as agitações dos estudantes. Aí considerou o caso em dois planos : aquele em que os estudantes tinham razão, por não lhes ser dado o que lhes era devido - e ele enumerava as faltas - e o plano em que não tinham razão e eram movidos por agentes revolucionários - e aí também enumerava as causas políticas e não políticas que os impeliam à insubordinação. Na conjuntura em que era normal a tendência em ver só um dos ângulos da questão, espantava a largueza de visão daquele velho, abrangendo serenamente a totalidade do problema, que exigia afinal mais compreensão e firmeza do que violência.
O homem que, em reuniões restritas, era de notável facilidade e clareza de exposição, não improvisava um discurso em público. O pudor, o receio de uma fífia no discorrer das ideias (tinha-as às vezes, mas apenas na voz) inibiam-no. Precisava primeiro de alinhar as ideias, integrá-las num sistema expositivo e escrever - para depois ler ao auditório. Era também uma defesa, para não lhe deturparem as palavras.


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1 de Setembro de 1997
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