Um
perfil psicológico de Salazar
"Não gosto da minha vida" |
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Não
são as condições favoráveis as mais propícias
à actuação das vontades fortes. Estas exigem o estímulo
da adversidade para se realizarem plenamente.
Mas as vontades fortes não são quase nunca as dos homens
arrogantes, de presença espectacular. Pelo contrário, a jactância
encobre as mais das vezes caracteres sem verdadeira consistência
moral. Com mais frequência as vontades fortes residem em personalidades
tímidas, retraídas pelo pudor das aparências que as
rebaixem ou tornem ridículas.
Certo, a timidez é tida pelos psicólogos como disposição emotivo-afectiva que pode levar a inibições de conduta nas relações normais entre as pessoas, senão mesma a procedimentos de inadaptação. De qualquer modo, trata-se de uma expressão de hiper-emotividade, que pode resultar de causas tipológicas ou de influências do meio educacional. Juntas, as duas razões agravam ou compensam exageros nas características da personalidade. E aqui será de enquadrar o desencadeamento de certas forças devidas a frustrações.
Já se tem aflorado a explicação da personalidade complexa de Salazar atribuindo-lhe origens de frustrado amoroso. Antes de nos determos nesse aspecto, anotemos o facto de se verificar, com certa frequência, nos filhos gerados em idade madura dos pais uma certa tendência para a hiper-emotividade. Ora quando Salazar nasceu, o pai tinha cinquenta anos e a mãe quarenta e quatro. Foi uma espécie de S. Joãozinho nado já no fim da esperança de novas maternidades. De resto, a má língua local dizia que eles se haviam casado na volta dos quarenta na esperança de não virem a encher-se de filhos que não pudessem educar. Afinal tiveram cinco, o que já não foi miséria. Não obstante tal resultado, o quintogénito de pais sentimentalmente saudáveis, como eram aqueles aldeões do Vimieiro, e para mais já com quatro raparigas, era uma espécie de bênção do Céu. Calcula-se o encantamento dos pais e os cuidados com o menino que viria a ser o ai-Jesus da família. Depois, com a boa cabeça do pequeno, cedo manifestada, e os óptimos resultados no estudo e na ascensão social, foi um deslumbramento. É o normal nas famílias em tais circunstâncias.
Quando um dia se fizer um estudo a sério e completo sobre a revolução salazariana, comparada às outras que nos últimos dois séculos ocorreram em Portugal, consideradas do ponto de vista das classes sociais originárias, será curioso ver, a par dos bacharéis em leis e dos filhos-segundos do Liberalismo, dos padres renegados e dos fidalgos românticos da I República, confirmados naquela os aldeãos das classes populares da província, feitos à custa do seu trabalho e por este alçados no mundo da Inteligência antes de serem chamados à política. Salazar é o grande exemplo. Mas há outros.
O moço António estava longe de ser, no fim do seu curso de Teologia, afastada a ideia da ordenação sacerdotal, avesso às tentativas amorosas. Conhecem-se alguns dos seus flirts. Ele próprio confessou que escrevera por essa altura poesias amorosas.
Julga-se que o mais fundo tenha sido o seu derretimento por uma jovem muito bonita, parece que ainda vagamente sua prima, a formosa Ida, cabelos loiros e olhos de endoidar. Chegara mesmo a escrever-lhe. Mas ela, que pertencia aliás aos aldeões remediados de Santa Comba, deve ter receado não estar à altura de um doutor que se anunciava com bem fundadas esperanças. Com o prudente bom-senso dos camponeses, não o animou.
Talvez gostasse dele. O moço delgado, macilento, de saúde frágil, mas bonito, e duma ternura adivinhada sob o seu pudor natural, era dos que agradam às mulheres. Não deixaria a desilusão de o ter ferido, apesar das razões sensatas da rapariga, que depois se casou, emigrou com o marido para o Congo Belga e lá constituíram uma família feliz.
Também se conhece a afeição do moço, nesses
tempos de mocidade, pela filha do patrão do pai. À mãe
da jovem Maria Júlia, porém, ciosa dos pergaminhos da família,
não agradava o caminho que os sentimentos podiam tomar e quis atalhar
o mal. Quando o momento lhe pareceu asado, a sós com o moço,
a orgulhosa senhora D. Maria Luiza advertiu-o:
- Olha António: nós somos muito teus amigos, e temos
razões para isso. Tu tens sido um rapaz exemplar e a tua inteligência
deve levar-te longe. Isso agrada-nos muito; mas, apesar de tudo, lembra-te
de que para nós hás-de ser sempre o filho do nosso feitor.
Naturalmente a filha teve admoestação correspondente.
O rapaz assegurou à senhora que nunca se esqueceria daquelas palavras; e o certo é que as relações entre os dois jovens cessaram.
Diz-se que vinte anos depois o Presidente do Conselho atendeu, certo
dia, ao telefone uma senhora cuja voz ele aliás conheceu:
- Sou Fulana... Não sei se se recorda de mim...
E logo ele:
- Perfeitamente. Daqui fala o filho do feitor de V. Ex.cia...
Alphonse Daudet contou a história da mula do Papa, que esperou sete anos para dar a sua resposta a uma patifaria que lhe fizeram. Salazar tinha essa capacidade especial de não se esquecer e saber esperar. A ocasião vem sempre. Não para fazer mal, mas para dar a lição adequada. E não apenas no plano amoroso.
Uma vez, quando preparavam no Vimieiro a vinda para Lisboa, com a inevitável
carga de malas, cestos, garrafões, sacos de batatas e réstias
de cebolas, bilha de azeite e molhos de hortaliça, a senhora Maria,
governante do Presidente, queixou-se-lhe:
- Então não quer saber? Pedi agora a um dos agentes,
aquele alto, sabe?, que me levasse para o carro o cesto que era mais pesadito;
e vai ele responde-me que o Estado lhe pagava para guardar o senhor Presidente
e não para alombar com cestos. Já se viu uma coisa assim?
Salazar ouviu-a com atenção e respondeu-lhe:
- Ele tem razão. O Estado não lhe paga senão para
que ele me guarde. Os cestos e as batatas são connosco... Não
peça mais essas coisas aos agentes.
Passado muito tempo, ia o Presidente a sair com uma pasta na mão,
o tal agente alto aproximou-se com todo o respeito:
- Essa pasta é pesada. Eu levo-a para o carro, Sr. Presidente!
Salazar segurou melhor a pasta:
- Não, muito obrigado. Não está certo. O Estado
paga-lhes para os senhores me guardarem e não para andarem a acartar
volumes para o carro...
Na vida amorosa de Salazar, ou antes, na sua pretensa frustração amorosa, é de considerar uma frase que o seu amigo Cerejeira sempre teve por misteriosa.
Viera a Lisboa e acedera finalmente a aceitar o convite para ministro
das Finanças. Foram esperá-lo a estação os
amigos, quando ele voltou a Coimbra para arrumar as suas coisas. Alguns
foram mesmo esperá-lo ao Entroncamento. Durante todo o caminho conversaram
sobre o assunto, lembrando coisas, sugerindo, querendo saber pormenores...
O Pe. Cerejeira, com a sua vivacidade de espírito, que contrastava
a reserva habitual de Salazar, e com a intimidade de quase irmão,
falou imenso, durante o caminho, depois já em casa. Salazar ouvia
mais do que falava. E quando galgada a escadaria da casa e chegados os
dois ao patim do primeiro andar, teve estas palavras surpreendentes:
- E lá se foi o casamento!
O casamento... Ninguém lhe conhecia compromissos sentimentais.
Ninguém. Nenhum dos seus amigos, nem sequer Cerejeira, seu companheiro
de casa... Mas havia uma intenção um propósito, um
sonho. Houve então um sacrifício.
Sonhava, como afectivo que era, ter o seu lar aconchegado e discreto. Indica-o o soneto de Plantin, que surpreendeu António Ferro, em Lisboa, na parede fria do escritório do estadista:
LE BONHEUR DE CE MONDE
N´avoir dettes, amour, ni procès ni querelle,
Ni de partage à faire avecque ses parents,
Se contenter de peu, n'espérer rien des grands,
Régler tous ses desseins sur un just modèle.
Vivre avecque franchise et sans ambition,
S´adonner sans scrupule à la dévotion,
Dompter ses passions, les rendre obeissantes.
Conserver l'esprit libre, et le jugement fort,
Dire son chapelet en cultivant ses entes,
C'est attendre chez soi bien doucement la mort.
Dir-se-ia que chegou a conseguir esse desiderato. Na sua casa de Lisboa,
corno na do Vimieiro, tudo era calmo e regular. Sentia-se à sua
volta um ambiente difuso de perenidade, como se a eternidade lhe pertencesse.
Notam-lho e ele responde com um balde de água fria:
- É porque eu creio no hábito. Viver perigosamente,
como queria o Nietzsche, isso não! Viver habitualmente!
Aqui um dos pontos em que a sua mentalidade se opunha à dos
fascisrnos que imperaram durante algum tempo na Europa. Estes eram nietzschianos,
queriam viver heroicamente, perigosamente, e no sonho de confirmar a Europa
no comando dos poderes do Mundo, fizeram-na retalhar pelos dois impérios
nascentes. Viver habitualmente é viver conforme uma ordem que se
estabeleceu, calma e sem sobressaltos.
Todavia, Salazar, apesar das aparências, não o conseguiu.
Havia de confessar à escritora francesa:
- Não é absurda a vida que eu levo? Dizem que não
gosto da vida. A realidade é outra: eu não gosto da minha
vida. Julga que não sou sensível às alegrias simples
que são permitidas aos outros? Julga que eu não gostaria
de ter criado um lar? Que não desejaria dormir sem preocupações,
livre das mil coisas mesquinhas que são o preço de toda a
obra governativa, quando se lhe fica sujeito durante dezenas de anos?
Não é realmente simples a personalidade de Salazar. Coerente no seu pensamento e na sua actividade governativa, coerente na sua vida moral. Mas contraditório por vezes nas suas reacções tanto como estas são variáveis ao longo do dia. Aquele homem de gelo tem vários Salazares lá dentro...
Será difícil afirmar que na vida de Salazar houve frustração ou sublimação de tensões naturais. Para um homem de intensa vida interior e de vontade forte, dirigida a objectivos que o transcendem, é perfeitamente admissível a segunda hipótese, sem embargo de as mulheres o terem considerado sempre - durante toda a vida - um charmeur. E ele também apreciava imenso a companhia das mulheres e o encanto das conversas femininas. Todavia, nem aí lhe foi poupado desgosto pela miséria do mundo envolvente.
Já sexagenário, ia com frequência tomar chá a casa de uma senhora, viscondessa, viúva, ainda nova, muito interessante. Começou a saber-se das visitas e logo as más-línguas desataram a apregoar proximidades de casamento.
Uma revista norte-americana publicou então uma reportagem grosseira, dando curso ao boato e escrevendo que o Premier português tinha a ambição de juntar as suas botifarras de rústico aos chapins aristocráticos da viscondessa. Ao ler o artigo, Salazar chorou, verdadeiramente chorou, de indignação pela infâmia do escrito, que não entendia a dignidade de relações respeitosas, e não sabia honrar a vida privada de uma senhora honestíssima, nem a vida de sacrifício de um homem que a tudo renunciara para servir o seu pais.