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O DESAFIO DE RENASCER

 

 

Em negrito um artigo de Frei Beto publicado n’O Globo da véspera do Natal de 98.

 

 

O cenário do presépio é arquetípico. Nosso racionalismo resiste a admitir que Maria, Virgem, concebeu pela ação do Espírito Santo. E que José, perplexo com a inusitada gravidez de sua noiva, quis abandoná-la em segredo. (Mateus 1,19) Preferiu a omissão à delação.

Surpresas seguidas de surpresas. Que padre é esse que fala dessa maneira? Começa dizendo que o cenário do presépio é arquetípico. É surpreendente ouvir um sacerdote falar que um homem e uma mulher que contemplam seu filho recém nascido seja um cenário arquetípico. O normal seria dizer que um casal se prostrava em adoração a Deus que se encarnara. Dizer que é um cenário arquetípico é produto direto de nossa mente racionalista, um casal em adoração é produto de fé, de crença.

De qualquer modo, a razão pode nos levar a variadas interpretações que podem ser modificadas com o tempo. A fé é uma só, acredita-se ou não se acredita. Tanto o que acredita como o que não acredita são impelidos pela crença.

O raciocínio puro nessa cena conduz à descrença. É impossível uma virgem dar à luz um filho. Apenas um ato de fé pode fazer acreditar numa concepção pelo Espírito Santo.

Penso haver uma terceira maneira de abordar esse fato que não é produto de fé ou de raciocínio. Pode ser produto de intuição. É ver, como parece ver Frei Beto, a representação de um arquétipo. Um homem e uma mulher virgens que vêem nascer de si mesmos um terceiro ser, uma criança recém nascida.

 

As figuras bíblicas são emblemáticas. Diante delas convém deixar de lado o racionalismo e examinar em que medida traduzem nossas experiências mais profundas. De uma virgem pode nascer um filho? A recusa a aceitar essa antinomia reside no fato de ela sinalizar caminhos e desafios que devemos enfrentar.

Não vejo todas as figuras bíblicas como emblemáticas, apenas algumas delas. Também penso que de uma virgem não pode nascer um filho, mas de um casal virgem, sim. Parecem absurdas as duas afirmativas, mas se acreditarmos que essas antinomias verdadeiramente sinalizam caminhos e desafios que precisam ser enfrentados, poderemos descobrir fatos benéficos para nós mesmos e para a humanidade. Porque, na verdade, elas traduzem nossas experiências muito profundas e insuspeitadas.

 

Como disse Jesus a Nicodemus. Um homem, ainda que velho, deve ousar nascer de novo (João 3,3) Para a cegueira de Nicodemus, como é possível retornar ao ventre da mãe? Para a clarividência de Jesus, nasce-se de novo assim como foi gerado o filho de Maria: pelo Espírito.

Aí está contido o desafio que nossa mente racionalista se recusa a aceitar. A idéia revelada pelo arquétipo não é aceitar o nascimento de uma criança, Jesus, que nasce de uma virgem, Maria e que irá se tornar uma figura divina. O cenário nos indica uma possibilidade, que não pode ser aceita por Nicodemus, de nascer de novo.

Disse em algum lugar que a maioria dos padres é previsível e moldada por padrões imutáveis. Frei Beto é uma agradável exceção. Revela-se capaz de se livrar do ranço secular da Igreja Católica e descobrir coisas novas. Congratulo-me com ele por ter visto uma relação entre o episódio de Nicodemus e o nascimento de Jesus. A idéia de renascer pelo Espírito é antiga, mas relacionar os dois episódios me parece algo novo, pelo menos da maneira como é exposto.

A Renovação Carismática exalta esse aspecto da renovação espiritual, chamam-na de Batismo no Espírito. É bastante procurado pelos devotos que o recebem em ocasiões de oração profunda através de imposição de mãos ou outros meios. As pessoas batizadas no Espírito verdadeiramente sofrem transformações interiores bastante saudáveis e se tornam cristãos mais dóceis. Pode acontecer o surgimento dos chamados dons do Espirito Santo com dom de curar, dom de ciência e outros. Penso que fica estabelecida uma certa comunicação com os conteúdos do inconsciente mas bastante limitada nos seus efeitos.

Discordo de Frei Beto apenas onde fala em nascer de uma virgem. Para mim o grande significado é nascer de um casal virgem, simbolizado por Maria e José.

 

É essa entrega, ou melhor, esse Natal à bordo do paradoxo, que tanto nos atemoriza. Tememos nascer de novo por medo de perder o que já temos e somos. Embora a intuição nos advirta que, do outro lado do rio, há uma fonte de riquezas, recusamos fazer a travessia.

É bastante agradável encontrar alguém que fala a nossa língua. Tememos nascer de novo por medo de perder o que já temos e somos. Se quem lê é alguém que teve coragem e paciência para ler o que tenho escrito, saberá quantas vezes me referi a esse medo de perder o que temos ou somos. A única diferença é que eu penso que acreditamos ser aquilo que temos, além de sermos apenas homens ou mulheres. Essa característica nunca perderemos se nascermos de novo, continuaremos homens ou mulheres.

Gostei imensamente quando ele diz que é uma entrega, é como ter um Natal à bordo do paradoxo. É disso que temos medo.

Temos medo de perder o que temos, temos medo de perder o que tolamente acreditamos que somos. Tudo aquilo que possuímos e que acreditamos que somos, nossa identidade a duras penas construída, não queremos largar. Temos um medo imenso de, de um momento para outro, nos vermos como um recém nascido, que acreditamos ser nada mais do que nada.

Se recusamos atravessar o rio quando nossa própria intuição nos diz que do outro lado há uma fonte de riquezas, imagine a dificuldade quando é alguém que nossos preconceitos rejeitam que nos fala dessas riquezas!

 

Contemplamos a beleza do arco-íris sem dar um passo em busca do tesouro que se esconde aos pés de seu arco. Nosso Natal é feito de castanhas e avelãs, vinhos e presentes, mas não desse ímpeto que ressoa no mais íntimo de nós mesmos: nascer de novo! Ousar ser o que se é!

Nascer de novo! Ser o que se é! Quanto se esconde atrás dessas poucas palavras!

Não conheço Frei Beto e é a primeira vez que leio algo escrito por ele, mas vejo alguém que se libertou, um místico autenticamente livre. Pena que essa palavra místico contenha conotações depreciativas ou mal interpretadas. Como ele usa o título de Frei e acreditando que ainda exerça funções sacerdotais penso que seja portador de uma delicadeza maravilhosa que lhe permite viver o papel de sacerdote e mesmo assim levar amor aos que dele se aproximam. Ë impossível para mim pensar que exista uma pessoa capaz de dizer o que ele diz e continuar atado às regras da Igreja. A não ser que possua essa delicadeza de exercer seu sacerdócio sem escandalizar as pessoas comuns que procuram padres.

Não posso saber como é a sua interioridade mas no entusiasmo que se desprende dessas palavras "ser o que se é" e "nascer de novo" tenho certeza que ele descobriu o que é: apenas um homem iluminado por Deus. Não um Frei, não um sacerdote, não um católico, não um escritor, não nada, um homem apenas, um homem numa multidão, um simples homem consciente da presença de Deus em seu interior.

 

Por que tanto medo de renascer? Por medo de perder afetos. Não queremos fazer cortes na imagem de nós mesmos que moldamos aos nossos olhos e que julgamos, equivocadamente, projetar nos olhos alheios.

Somos prisioneiros de nossas próprias ilusões. Marionetes de afetos superficiais que incensam o nosso ego, mas não preenchem a nossa existência.

Vendemos o Reino dos Céus por uns poucos afetos superficiais. Repetindo o que já disse várias vezes, na verdade um simples problema de identidade. Eu sou alguém que recebe afetos, que será de mim se deixar de ser esse alguém que recebe afetos?

Preferimos continuar prisioneiros de nossas próprias ilusões a mergulhar num mundo novo de libertação sem igual.

É preciso coragem? Sim é preciso coragem. Por isso Frei Beto chamou desafio de nascer de novo. O homem moderno gosta de desafios que enaltecem o seu ego, que valorizam sua identidade, mas para esse pequeno desafio que demanda coragem de olhar para dentro de si mesmo falta-lhe a necessária coragem. Pena que essa coragem não possa ser comprada na farmácia ou no supermercado. Na verdade não é necessária muita coragem, um pouquinho só é suficiente. Basta deixar de se olhar como um Deus ou como um verme insignificante e também deixar de olhar os outros como deuses ou vermes insignificantes.

 

Maria ousou escolher entre o mistério do anjo e a honra de José. Entregou-se à voz do Espírito. Arriscou-se a deixar o noivo humilhado aos olhos do público. Correu o risco de ser denunciada por ele como adúltera e, portanto, condenada a morrer apedrejada.

José, por sua vez, mergulhou na "noite escura". Não deu asas à sua imaginação. Abraçou as veredas da fé. E viu também o que Maria havia visto: O Espírito gera vida plena e o faz acima e além do alcance de nossos olhos e de nossa mente.

O Espírito gesta o paradoxo Jesus. Nele Deus nasce homem. O Todo-Poderoso vem à luz num pasto, filho de sem-tetos.

Verbo encarnado, é caçado como perigosa ameaça ao poder do rei Herodes.

Para ouvidos cristãos essa leitura fala por si mesma. E para os não-cristãos, hoje imensa maioria? A proposta da Igreja é fazê-los cristãos. Hoje quase uma impossibilidade.

Nunca me detive a meditar nesses episódios do Evangelho, mas hoje, graças ao Frei Beto, creio poder contribuir com algumas considerações que talvez possam ter algum valor para um não cristão ou até para algum cristão que não consegue se libertar do peso do racionalismo.

Como disse à pouco, vejo Maria e José como um casal virgem que gera um filho. Não um casal virgem no sentido histórico, mas um símbolo representativo do conflito milenar entre masculinidade e feminilidade. A eterna guerra dos sexos que se processa no interior de cada um, seja ele homem ou mulher.

Maria representa o aspecto feminino. Aquele aspecto de nosso psiquismo que se preocupa com a vida, com a gestação, com a criatividade a todo custo. A pessoa em nós capaz de dizer "sim" para gerar uma criança divina, mesmo correndo o risco de morrer apedrejada, apesar de perceber que seu amado José seria humilhado.

José representa o lado masculino. Aquele aspecto de nosso psiquismo que se preocupa com o que os outros vão pensar, com a importância de nosso ego que poderá ser humilhado, que se recusa a ver as riquezas do outro lado do rio.

Maria é a intuição e o sentimento, José é a razão e o pensamento.

Maria e José representam o casal virgem que vive em nosso interior em eterno conflito. Somente a fusão dos dois poderá gerar o menino-Deus, Jesus, Deus-em-nós.

Gostaria que ficasse bem claro que quando uso as palavras "menino-Deus", "Jesus" ou "Deus em nós", não estou me referindo ao Jesus histórico, ao Jesus das religiões ou ao Deus das religiões, mas a centelha divina que habita no interior de cada um de nós.

É interessante observar dois fatos bastante significativos. Maria parte em busca de uma mulher, sua prima Isabel, também em gestação, para partilhar a alegria comum. José, iluminado por Deus através do anjo que se manifesta em sonho, é quem toma a iniciativa de efetuar a reconciliação, aceitando desposar Maria.

Creio estar aí contido o cerne do desafio de nascer de novo. José é um autêntico representante do pensar dominador, produzido pela sociedade patriarcal. Como atribuir a ele a iniciativa da reconciliação?

Como um ser humano comum, José é também possuidor de um aspecto feminino reprimido. A mulher dentro dele acolheu a proposta divina de amor e conciliação.

Outros aspectos no nascimento do menino-Deus podem ser apreciados.

O cântico dos anjos e o louvor dos pastores representa a alegria do renascer.

Os presentes dos magos as riquezas que estavam do outro lado do rio.

A fuga para o Egito representa o afastamento da rejeição que a sociedade patriarcal faz a um Deus que quer partilhar da vida conosco. Ela prefere um Deus falsamente todo-poderoso ao qual possa ilusoriamente dominar e manipular. Como realmente viria a acontecer com a ereção de uma Igreja patriarcal que pretende formar consciências até hoje. No cenário do presépio a sociedade patriarcal é simbolizada por Herodes que pretendia eliminar o menino-Deus.

Menino que cresceu em graça, que surpreendeu os doutores com sua sabedoria e que mais tarde veio a ser definitivamente rejeitado quando o crucificaram. E posteriormente o identificaram com aquele mesmo Deus Todo poderoso.

 

Os santos e os místicos decifram o enigma do paradoxo. Pois vivem no reverso de si mesmos e, do lado de lá, reencontram-se. Tornam-se livres de toda alienação entre essência e existência. Não mendigam reconhecimentos, nem se preocupam com a imagem que os outros fazem deles. São livres. Sobrepassam a lei com amor, a disciplina com justiça, a ordem com a liberdade. São seres visceralmente natalinos. O Natal é a festa do renascimento. É o momento em que a liturgia cristã nos convida a deixar-nos engravidar pelo Espírito. Abraçar a opção de Maria e percorrer as sendas mistéricas da fé de José. Ser excluído "da cidade" e tomar humildemente o rumo da manjedoura, acreditando na vida nova que se engendra nos subterrâneos da História.

Em suma, feliz Natal é permitir que o menino se faça Deus em nós.

Quase perfeito, faço algumas restrições.

Não é preciso ser santo ou místico para decifrar o enigma do paradoxo. Qualquer um que realmente queira pode fazê-lo. Também de nada serve decifrar, é preciso vivenciar, viver o paradoxo.

A mulher Maria histórica verdadeiramente disse sim ao nascimento do menino-Deus, mas de certa forma a visita à prima Isabel representa uma fuga, uma recusa ao casamento interior com o seu José interior. Refugiou-se simbolicamente na sociedade igualitária feminina. Penso que o passo decisivo e mais corajoso (não esquecer que ele era um autêntico espécime do machismo judeu milenar) foi dado por José, que aceitou esse casamento, não por um ato de fé, mas dando o seu sim à presença divina, que é quem realmente incentiva o casamento.

Tanto o sim de Maria quanto o sim de José são fundamentais para que se realize a fusão da Maria e do José que convivem no interior de todos nós, sem o quê o nascimento do menino-Deus não poderá acontecer. O Emanuel, Deus em nós não se realiza! Feliz Natal!


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