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GÊNESE

 

Capítulo 1 (Bíblia de Jerusalém)

 

Vers. 1 No princípio Deus criou o céu e a terra...

Vers. 3 Deus disse: "Haja luz" e houve luz...

Vers. 11 Deus disse: "Que a terra verdeje de verdura: ervas que dêem semente e árvores frutíferas...

Vers. 24 Deus disse: "Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie...

Vers. 26 Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança e que eles dominem sobre os peixes dos mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra".

Vers. 27 Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou.

O pensamento cristão aceita que esse relato da criação procede de uma tradição diversa da criação do homem que vem a seguir. Aceita também que não tem pretensões que concorde com o pensamento científico, mas que com o pensar da época revela um Deus criador e transcendente, anterior ao mundo.

O que pretendo realçar é que o relato que se segue, aceito como uma espécie de continuação da obra criadora, pode ter um significado diferente e muito mais importante do que apenas um relato simbólico e ingênuo da criação do homem.

 

Capítulo 2

 

Vers. 4b No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu, não havia ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha ainda crescido...

Vers. 7 Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.

Vers. 15 Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e guardar.

Vers. 18 Iahweh Deus disse: "Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda".

Vers. 19 Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse.

Vers. 20 O homem deu nomes a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para um homem, não encontrou a auxiliar que lhe correspondesse.

Vers. 21 Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e cresceu carne em seu lugar.

Vers. 22 Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem.

Vers. 23 Então o homem exclamou: "Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada "mulher" porque foi tirada do homem!"

Vers. 24 Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne.

O primeiro relato é frio, objetivo, simples, direto. Para a criação do homem: "Façamos o homem. ... homem e mulher ele os criou". O segundo é uma história fantástica!

Porquê teria o redator da segunda fonte escrito essa história, no mínimo, absurda?

Para as religiões esse texto serve, entre outras coisas, apenas como subsídio para a indissolubilidade do matrimônio como vontade divina. Acredito que ai esteja contido um mito de extraordinário valor para a humanidade, algo parecido com o mito do andrógino.

 

Citado por Walter Boechat em "A desconstrução do masculino".

A fantasia grega da origem do universo chegou até nós, na cosmogonia de Hesíodo. Nela, do caos primordial emerge Gaia, o arquétipo da Grande Mãe, a terra. Urano, o céu, o arquétipo do Pai, compõe com Gaia, o primeiro casal primordial. Entretanto um oráculo prevê que Urano seria destronado e sucedido por um filho seu. Urano, atemorizado com uma possível perda de poder, passa a impedir que seus filhos nasçam do ventre de Gaia, até que esta, atormentada por intermináveis dores provocadas pelos filhos apertados em seu ventre, lança mão de um estratagema. Associa-se a seu filho mais novo, Crono, dá-lhe uma foice, e enquanto Urano deita-se sobre ela, Crono o castra.

O oráculo cumpre-se então e Crono sucede a Urano no domínio do cosmo, casado com sua irmã Rhea. Novamente o oráculo fatídico prevê a sucessão pelo destronamento do pai Crono pelo seu filho. Crono aterrorizado, permite que seus filhos nasçam, apenas para devorá-los em seguida.

O filho mais novo de Rhea, Zeus, ajudado por sua mãe, fará com que a profecia do oráculo se cumpra. Quando Crono se prepara para devorá-lo, Rhea o substitui por uma pedra. Zeus prontamente acorrenta o pai devorador e como auxílio de Métis, sua irmã, que lhe proporciona um líquido emético, faz Crono vomitar seus irmãos já devorados e o expulsa para as regiões do Tártaro.

Zeus toma Métis como consorte e a engravida. O oráculo ameaçador volta a se manifestar, predizendo que de Métis nasceriam uma mulher que seria semelhante a um homem e um jovem "com o coração de um conquistador, que viria a ser senhor dos deuses e dos homens"

O que nos parece da maior importância, tanto mítica quanto psicológica, é que Zeus reage da mesma forma como seus ancestrais Crono e Urano, quando ameaçados pela sucessão temporal: Zeus devora Métis!

Aqui se configura a problemática sombria dos arquétipos do masculino, a constante repetição, característica da cultura machista, a incapacidade de criatividade e originalidade. As vária gerações repetem a atitude de devoramento, de pai para filho.

Freud denominou esse constante impulso de repetir "compulsão de repetição", o instinto de morte, a essência da neurose.

A narrativa mítica fornece, entretanto, uma possível saída para esse aprisionamento do masculino devorador! Zeus vem a sentir, tempos depois, uma terrível cefalalgia. Sua cabeça dói porque ele sofre as dores do parto, pois dele nasce, já vestindo armadura e portando lança, a favorita de seu pai-Zeus, Palas Atena. "A mulher semelhante a um homem (Homero), que fora profetizada pelo oráculo finalmente nasce.

Dentro de uma leitura arquetípica da psicomitologia, Atena representa o arquétipo da "anima", a capacidade de fantasiar e de imaginar que brota da mente masculina. No momento em que esse brotamento ocorre, os sucessivos devoramentos cessam, e o equilibro se instala no Olimpo.

Não é necessário um grande esforço para perceber a semelhança entre o mito da criação da mitologia grega e o mito bíblico da segunda fonte que relata a criação do homem.

A mais importante e significativa é que em ambos, uma mulher extraordinária nasce de um homem. Esse fato, creio, tem um valor imenso que nunca foi suficientemente realçado.

Já se disse que o nascimento de Eva através de Adão seria resultado da inveja masculina da maternidade feminina, mas creio ser essa explicação totalmente inconsistente e desprovida de maior significado. Porque teria essa suposta inveja aparecido apenas no momento da criação? Não me parece também que apenas inveja pudesse produzir uma história tão rica de lances extraordinários e de fatos tão originais.

Vejamos alguns tópicos.

Teólogos e exegetas concordam que a palavra "homem" que aparece nos textos acima sempre se refere ao homem e a mulher comuns, assim como Adão simboliza todos os homens e Eva todas as mulheres. Mas a mulher que nasce de um homem, homem que supõe-se pode ser macho ou fêmea, é especial, tanto que o homem que a vê quando lhe é apresentada por Deus exclama: esta, sim!, mostrando que ela é diferente das mulheres comuns e expressando uma autêntica surpresa ao exclamar: essa, sim!

Por outro lado, se havia homens e mulheres, porque teria Deus dito que o homem estava só e que precisaria de uma auxiliar que lhe correspondesse? Afinal o macho já possuía uma fêmea. Não é difícil imaginar que a situação como se apresentava era insatisfatória, não é bom que homens e mulheres estejam sós, algo precisava ser feito para remediar a situação. "Estar só" parece significar que o homem só tinha acesso ao seu psiquismo masculino e a mulher a seu psiquismo feminino. Para deixar de estar só era preciso que pudessem conviver com os dois aspectos de seus psiquismos. Deus então apresenta ao homem todos os seres viventes que criara, da mesma maneira que criara o homem, para que os nomeasse. Subentende-se que a proposta foi apresentada ao homem e a mulher comuns, que não encontraram entre todos que lhes foram apresentados nenhum que pudesse ser a auxiliar que faria com que não estivessem sós. Dar nome, nomear, parece significar aqui eleger aquela que seria a auxiliar desejada por Deus para que o homem deixasse de ser só.

Somente aquela que nasceu de suas entranhas, aquela que era osso de seus ossos, carne de sua carne, foi eleita sua auxiliar e mereceu um nome especial: "mulher".

Semelhante a Palas Atena parida da cabeça de Zeus.

É evidente a semelhança entre Palas Atena que nasce da cabeça de Zeus e a "mulher" que nasce da costela do homem. Autênticas expressões míticas do arquétipo da "anima".

Diz o autor acima que quando ocorre o brotamento da "anima, os devoramentos cessam e o equilíbrio se instala no Olimpo.

De maneira semelhante se expressa o autor bíblico quando diz que "não é bom que o homem esteja só" e que precisa de "uma auxiliar que lhe corresponda" e quando mostra que o homem exulta quando descobre a "mulher" que é osso de seus ossos e carne de sua carne. Não uma mulher qualquer, mas aquela que nasceu de seu interior.

Mas o autor bíblico vai mais além, quando coloca esta frase intrigante, que nada parece ter com o contexto: "Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne".

O que pode nos revelar essa pequena frase? Inúmeras conjeturas podem ser aventadas:

A menção de pai e mãe pode nos levar a pensar não num momento da criação mas numa situação particular da humanidade, num determinado momento da evolução da consciência humana. Percebe-se uma situação problemática, o homem se sente só, algo precisa ser feito. Possuía o domínio sobre os animais e as aves do céu, pois havia lhes dado um nome, mas a situação ainda se mostrava problemática, não o satisfazia. Talvez procurasse responder a pergunta milenar: quem sou eu? Experimentou identificar-se com todos os animais de ambos os sexos e também com seu semelhante do sexo oposto, mas não encontrou satisfação. A expressão "por isso", ou seja, devido a existência de uma situação problemática e insatisfatória, nos leva a conjeturar que a única solução para o problema residia naquela apresentada: é preciso que o homem abandone pai e mãe e se una à sua mulher, aquela que procede de seu interior e que com ela se torne uma só carne, isto é, um verdadeiro homem, não mais só e isolado, mas em comunhão consigo mesmo e consequentemente com toda a humanidade. Ou, dito de outra maneira, o problema está na identificação com pai e mãe, que precisa ser abandonada, porque é insatisfatória e mantém o homem em solidão. Identificar-se com o pai e a mãe parece ser semelhante a identificar-se com os animais e as aves e tudo mais. A solução é se fundir com a mulher que nascerá de seu interior, acabando com a solidão. Não haverá mais um homem e uma mulher interiores e solitários, mas os dois fundidos e gerando uma nova comunidade onde não haverá mais solidão.

Disse que o autor bíblico foi além do mito grego porque neste, o surgimento da "anima" provoca apenas um equilíbrio no Olimpo, o homem e a mulher internos justapostos, mas naquele se propõe a fusão dos dois, que resultará num novo homem, não mais só, não mais dividido, mas íntegro: uma só carne.

Tanto o mito grego como a redação do Gênesis foram produzidos séculos antes de Cristo, por isso deve causar estranheza que se dê importância a essas coisas nas proximidades do terceiro milênio da era cristã, época da informática e de avançadíssima tecnologia, mas quando se tem uma experiência pessoal interior relacionada diretamente com esses mitos, nossa ótica muda completamente.

Há muito tempo atrás, vinte e poucos anos, ao terminar de ler um livro, nele escrevi: "Os conflitos cessam e a harmonia interior se inicia quando o homem e a mulher que existem em nós se reconciliam e se amam". Essa frase nasceu por si só, algo como uma intuição. Sentia que era verdadeira, mas não tinha a menor idéia de como realizá-la nem podia saber se seria possível realizá-la. A própria idéia de um homem e de uma mulher interiores eram apenas teorias que aceitava, talvez por acreditar em Jung que via o inconsciente masculino como expressão de sua feminilidade escondida. O inverso para o inconsciente feminino.

Mais de vinte anos depois, tendo vivido experiências interiores onde pude perceber a existência em minha interioridade de um homem e uma mulher, tão reais como qualquer realidade, como que concretos, partilhando a mesma vida, cada um à sua maneira, minha visão do mundo mudou drasticamente, eu mudei drasticamente.

Pude então compreender o significado de "abandonará o homem sua mãe e seu pai", pude compreender a força dos arquétipos e a importância dos mitos. Não pelo seu valor histórico ou pela contribuição que possam dar para a compreensão de nosso psiquismo, mas como realidades potencialmente capazes de transformar o homem, habilitando-o a reconstruir o mundo que ele mesmo está destruindo. De que adianta adquirirmos um profundo conhecimento de como o homem funciona, metas das psicologias, das filosofias, da antropologia e outras, se não fazemos absolutamente nada no sentido de reconstruir o homem? De que adianta saber, se estacionamos no saber? Orgulhamo-nos de nosso imenso conhecimento, de nossas moderníssimas tecnologias, mas só conseguimos remover alguns efeitos do mal que produzimos. Nunca procuramos as causas que produzem problemas, combatemos os efeitos daquilo que nós mesmos causamos. Ou então pretendemos reconstruir o homem inventando novos papéis para que ele passe a representar, fruto apenas do uso da deusa razão.

Quem aceitará que a solução de todos os problemas que a humanidade sofre está contida numa afirmativa bíblica mal interpretada, ou num episódio da mitologia grega?

Por essas alturas, você certamente perguntará: de que adianta saber que a integração da "anima’, a fusão do homem e da mulher interiores, a realização de "uma só carne" poderá produzir um novo homem, melhor que o atual?

Realmente, só saber de nada adianta. Seria preciso que alguns efetivamente se transformassem e de alguma maneira contaminassem uma grande parcela da humanidade para que também se transformasse. É um problema de ação, não de reflexão ou de conhecimento. Essa transformação é possível e está ao alcance de qualquer ser humano, tenha ele ou não qualquer conhecimento de mitologias, psicologias ou filosofias, tenha ele dinheiro, cultura ou posição social, saiba ele ou não ler e escrever. Cada um de nós carrega em seu interior a solução para todos os problemas que assolam a humanidade inteira, mas ninguém se dispõe a olhar para dentro, só conseguimos olhar para fora.

 

Vers. 25 Ora, todos os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam.

As religiões cristãs vêm nesse "estavam nus" indícios de concupiscência, tanto que mais adiante Adão diz a Deus que se escondeu porque estava nu e saber que estava nu fez Deus concluir que ele comera da árvore do bem e do mal.

Acredito que nada tem a haver com concupiscência, pudor, vergonha de sexo ou semelhante. Ainda hoje índios brasileiros vivem nus com total naturalidade.

Penso que o estar nu simboliza um total desarmamento, nenhuma defesa, uma total insegurança, nenhum medo, um absoluto despojamento, término da guerra dos sexos, entrega total, abandono incondicional de um no outro. Resultado direto da fusão psíquica homem-mulher.

Não sei se por coincidência ou se por uma razão qualquer, mas no momento crucial em que pessoalmente vivi uma experiência interior totalmente espontânea e inesperada, em que meu eu-masculino se fundiu a meu eu-feminino, estávamos ambos completamente nus e tudo parecia perfeitamente natural, não havia nenhuma tensão como vergonha, pudor ou preocupação. A fusão se processou num nível psíquico ao mesmo tempo que se realizava num nível de corpos visíveis e sensíveis que se interpenetravam e fundiam simbolicamente. Sai da experiência sentindo como descrito acima: desarmado, inseguro e desprovido de qualquer espécie de medo, entre outras coisas.

 

Capítulo 3

 

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: "Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?" A mulher respondeu à serpente: "Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim Deus disse: "Dele não comerás, nele não tocareis, sob pena de morte". A serpente disse então à mulher: "Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal". A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que era, esta árvore, desejável para adquirir conhecimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também ao seu marido e ele comeu. Então abriram-se os olhos aos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram.

Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim, à brisa do dia, e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim. Iahweh Deus chamou o homem: "Onde estás?", disse ele. "Ouvi teus passos no jardim", respondeu o homem: "tive medo porque estou nu e me escondi". Ele retomou: "E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi comer!" O homem respondeu: "A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore e eu comi!" Iahweh Deus disse à mulher: "Que fizeste?" E a mulher respondeu: "A serpente me seduziu e eu comi!" Então Iahweh Deus disse à serpente: "Porque fizeste isso és maldita entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida. Porei uma hostilidade entre ti e a mulher, entre a tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar".

À mulher ele disse: "multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos . Teu desejo te levará ao teu marido e ele te dominará".

Ao homem ele disse: "Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira de comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimento dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos e comerás a erva dos campos. Com o suor do teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás".

O homem chamou sua mulher "Eva", por ser a mãe de todos os viventes. Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele e os vestiu. Depois disse Iahweh Deus: "Se o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre". E Iahweh Deus o expulsou do jardim de Éden para cultivar o solo de onde fora tirado. Ele baniu o homem e colocou, diante do jardim de Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida.

Pondo de lado a visão judaico-cristã que vê nesse relato o pecado original da desobediência a Deus com todas as suas conseqüências e que teria sido escrito por inspiração divina, prefiro vê-lo como o relato de um mito que espelha a consciência humana num determinado período de sua evolução.

Assim, podemos ver o relato como uma peça teatral que se desenrola num cenário: um jardim onde se destacam duas árvores importantes, uma que simboliza a consciência de si, a consciência de indivíduo, voltada para a pessoa, que num determinado momento de sua evolução se percebe como única e destacada dos demais, originalmente desenvolvida de modo mais marcante no homem de sexo masculino, no macho, e outra que simboliza uma nova consciência, um superior estágio no desenvolvimento da consciência humana que lhe permitirá viver a vida sem medo da morte e que a viverá como algo eterno. O autor bíblico as chamou de árvore do conhecimento do bem e do mal e árvore da vida.

O estágio da consciência individual que persiste até hoje, simbolizado pela primeira árvore, a aquisição do conhecimento do bem e do mal, gerou o homem psiquicamente dividido, onde seu lado psíquico masculino é hostil e vive em guerra com seu lado feminino, seus hemisférios cerebrais direito e esquerdo atuam separadamente e em desarmonia. Criou o mundo caótico e problemático em que vivemos até hoje

Nesse cenário, a interioridade humana, o psiquismo humano, atuam quatro personagens: Deus, Adão, Eva e a Serpente.

Deus, que aparece como um personagem que se mostra, que fala, que anda, que tem poder, que é fonte de vida e de sabedoria e que aparenta desejar ser obedecido, simboliza o sagrado na interioridade humana. Qualquer pessoa que tenha vivido uma verdadeira experiência mística ou que de alguma maneira tenha tido um autêntico e direto contato com os conteúdos de seu inconsciente, o percebe como uma fonte de luz inefável e vivificante.

Adão, visto como o primeiro homem, simboliza a orientação caracteristicamente masculina do psiquismo humano, a consciência individual, aquele que diz: eu quero, eu faço, eu sou. Representa as atividades comuns e típicas do hemisfério cerebral esquerdo.

Eva, vista como a primeira mulher, saída do homem, simboliza a consciência de orientação caracteristicamente feminina coletiva, a consciência voltada para a comunidade, aquela que diz: nós sofremos, nós rimos, nós vivemos. Representa as atividades comuns do hemisfério cerebral direito.

A serpente, vista como um animal astuto e que incita a revolta, simboliza nosso psiquismo instintivo, nosso lado animal, nosso lado sombrio.

Temos pois um novo cenário e novos personagens, vejamos como poderia ser o novo texto, como poderiam ser os novos diálogos.

SERPENTE a Eva: É verdade que vocês foram proibidos de desenvolver uma consciência individual, uma consciência de si mesmo como pessoas autônomas e independentes das outras, permanecendo eternamente com essa consciência coletiva que todos possuem de pertencer a um grupo e viverem para e com o grupo?

EVA: Sim, nossa luz interior parece querer isso, mas Adão acha que não deve ser assim, ele pensa que possuir uma consciência individual pode nos libertar e nos levar a grandes realizações. Alguém com uma forte consciência individual poderá conduzir todo o grupo para um mundo mais importante e significativo. Poderemos ser senhores do mundo e de tudo que ele contém. Eu tenho muito medo, acho que a existência de consciências individuais, cada um querendo uma coisa diferente, poderá levar a uma grande confusão e todos poderemos morrer.

SERPENTE : Nada disso, você interpretou mal o que sua luz interior lhe quis dizer. Não haverá nenhum perigo de morte, o problema é que o desabrochar da consciência individual os fará pensar que se tornaram onipotentes, como deuses, achando que serão os donos do mundo e isso acabará por destruir o próprio mundo e ai sim, depois de muito tempo, a destruição do mundo levará seus descendentes inevitavelmente para a morte.

EVA: (mais tarde, dirigindo-se a Adão) Adão, estive falando com a serpente e ela tem a sua opinião, ela acha que possuir uma consciência individual não leva à morte, mas trará uma série de problemas para nossos descendentes e eles poderão até morrer.

ADÃO: Bobagem, uma consciência individual nos trará uma série de vantagens. Cada um será responsável pela sua própria vida, cada um poderá desenvolver seus próprios conhecimentos, poderemos nos tornar capazes de vencer todos os nossos inimigos construindo armas poderosas, poderemos dominar o mundo, não precisaremos mais obedecer à nossa luz interior, seremos donos de nossos próprios narizes, seremos livres. Poderemos colocar os mais tolos a trabalharem para nós e viver uma vida de prazeres, poderemos realmente gozar a vida.

EVA: Não, Adão. Devemos deixar tudo como está. Afinal não temos muitos problemas, a natureza provê o nosso sustento, somos uma grande família que vive em paz. O que é de um é de todos. Se fizermos o que você quer, alguns vão se apoderar de tudo e outros ficarão sem nada.

ADÃO: Que importa isso, os mais fortes terão tudo, os outros que se lixem, se você quiser ficar com eles, problema seu. Eu já sei o que vou fazer e ninguém me irá impedir, nem a luz nem você. E depois nem pense em se queixar, pois você mesma, com essa sua conversa com a serpente me ajudou a decidir. Não vou mais ouvir o que você possa dizer e muito menos o que aquela luz possa querer. De hoje em diante só vou me preocupar comigo. Não quero ser um número numa multidão, quero ser alguém!

 

E assim o macho interno sufocou a sua fêmea interna, apagou a sua luz orientadora e dominou a natureza, os animais e a mulher.

E as profecias de Deus se realizaram:

NA SERPENTE, o aspecto instintivo, animalesco do homem que se expressa pela fúria destruidora de vida que caracteriza a orientação masculina do homem, seu empenho em destruir e atacar bestialmente a natureza e tudo que ela contém, principalmente a seus semelhantes com seu espirito guerreiro provocador de guerras, genocídios e discriminações.

NA MULHER: principalmente por ser dominada e sufocada pelo homem, caracterizada pela vitória da razão sobre o sentimento, mutilando os seres humanos e tornando-os interiormente divididos.

NO HOMEM: fazendo nascer um alguém, um eu capaz de perceber o sofrimento e a dureza da luta pela sobrevivência.

EM AMBOS: estabelecendo a guerra dos sexos interna e externamente, caracterizada pela vergonha de agora estarem nus.

 

Vários aspectos do mito ainda precisam ser pensados: qual o verdadeiro significado daquela sentença "abandonará o homem seu pai e sua mãe, se unirá a sua mulher e serão uma só carne", porque teria Deus bloqueado o caminho para a árvore da vida, o que isso poderia significar e que relação poderá haver entre os dois fatos.

Na redação bíblica a sentença acima vem logo em seguida à surpresa e certeza que Adão expressa quando encontra a "mulher" e diz: essa, sim! A expressão "por isso", por ter encontrado a "mulher", faz pensar que é o motivo pelo qual terá o homem que abandonar pai e mãe, etc. A descoberta da "anima" é causa da necessidade de abandonar pai e mãe, unir-se a ela e se tornar uma só carne. Ou gera essa necessidade.

Entendo que "pai" simboliza as atividades do hemisfério cerebral esquerdo, a orientação típica da consciência masculina voltada para si mesma, para o indivíduo. A consciência da dominação, da posse, do uso das pessoas e das coisas.

"Mãe" representa o outro hemisfério, a orientação da consciência feminina voltada para a comunidade, que busca o bem comum, a dádiva de cada um para o outro.

"Mulher" representa a "anima", o inconsciente masculino iluminado pela luz sagrada.

"Se unirá" indica uma fusão, uma união íntima em que dois se fundem e geram uma nova unidade.

"Uma só carne" indica uma novo ser, íntegro, não mais dividido e conflitante.

Assim, se um homem encontra sua "anima", exulta com o encontro e não a rejeita, inevitavelmente abandonará as figuras paternas e maternas com que permanecia identificado, e que geravam conflitos, se fundirá com sua "anima" e renascerá um novo homem, íntegro e liberto de conflitos.

Nossas psicologias ensinam que a criança precisa se identificar com os pais, o homem com a figura de pai e a mulher com a figura de mãe.

Penso que esse fato, mesmo que verdadeiro, é prejudicial ao desenvolvimento dos seres humanos. Na verdade constitui-se no maior empecilho à integração da "anima", desejável na formação de um ser humano mais perfeito e saudável.

Creio haver também uma razão mais profunda que necessitaria ser estudada mais extensamente. Refiro-me à identificação com pai e mãe que é realizada no momento em que se dá a concepção. Inúmeras pessoas que reviveram os momentos de sua concepção, num particular estado alterado de consciência facilmente alcançável, relatam esse fenômeno singular de identificação dupla com pai e mãe, em que um deles é reprimido porque não parece condizer com o próprio sexo. O processo de identificação que se dá na infância parece ser uma conseqüência dessa tendência de identificação que caracteriza o ser humano e que se prolonga pelo resto da vida na busca de uma identidade pessoal.

O segundo aspecto que precisa ser pensado é o do bloqueio do caminho para a árvore da vida. Como conseqüência do fato evolutivo da aquisição da consciência pessoal, simbolizado no ato de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, Deus expulsou o homem do paraíso, colocando guardas na porta para que ele não comesse da árvore da vida que lhe daria a vida eterna.

Da mesma maneira que o mito diz que a vontade de Deus era que não comessem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas, tendo se consumado o ato, Deus se conforma e aceita, entendo que o mesmo poderia acontecer com a árvore da vida. Ele só poderia acontecer se fosse realizado o abandono de pai e mãe, a união com a mulher e o nascimento de uma só carne. Como a decisão do homem foi continuar dividido, identificado com pai e mãe, rejeitando um deles, ou seja, aferrado a sua identidade de macho dominador, automaticamente ficou impedido o acesso à vida eterna, que só poderá ser possível após o nascimento da nova "carne", após a integração da "anima".

Talvez a palavra religião, "re ligio", re-ligar, tenha na verdade esse significado: religar o consciente ao inconsciente.

Que é afinal essa vida eterna? A fantasia cristã relacionada com a vinda de Cristo?

Penso que seja uma realidade possível para a vida humana, que só poderá ser efetivada após o nascimento do novo homem, resultado da integração da "anima" ao seu psiquismo. O homem liberto dos conflitos interiores gerados pela guerra dos sexos, as figuras de pai e mãe em hostilidade perpétua, que carrega dentro de si, abre caminho, torna-o apto a se aproximar da árvore da vida, comer do seu fruto e viver autenticamente uma vida eterna. Não após a morte biológica, como querem os cristãos, mas após a morte do homem interiormente dividido, incapaz de lidar com a morte.

Antes de conjeturar em como seria uma vida eterna é necessário encontrar um meio eficaz de realizar efetivamente a fusão psíquica com a "anima". Como fazer nascer o novo homem, o homem do futuro, aquele que estará apto a estabelecer e viver essa vida eterna?

Mais adiante proponho um método simples, acessível a qualquer pessoa, resultado de sua eficácia apenas em mim mesmo, em minha própria experiência pessoal. Procuro encontrar pessoas que se disponham a experimentar e colaborar no seu aperfeiçoamento ou mesmo que se disponham a elaborar outros métodos que possam ser eficazes, ou no mínimo partilhar e discutir minha proposta, mas não estou conseguindo nada. Talvez a divulgação extensiva do que escrevo possa ser um veículo.

Acredito que abandonar pai e mãe significa: desligar-se de pai e mãe, deixar de ser filho de um homem e de uma mulher; que unir-se a sua mulher significa: fundir-se à sua mulher interna, sua "anima", religar-se; e se tornar uma só carne significa: tornar-se uma nova criatura, um filho de Deus, capaz de viver a vida eterna. Por isso, penso, Jesus dizia: é preciso que o filho do homem morra e ressuscite.

Concluindo. Vejo a vida eterna como uma nova maneira de viver, totalmente diferente da atual. Uma humanidade constituída de pessoas autenticamente livres, íntegras, incapazes de dominar ou explorar seus semelhantes ou a natureza, que não precisarão de leis ou regulamentos, em que cada um verá o outro como a si mesmo, que não terão nenhuma preocupação com segurança ou com morte e que poderão livremente decidir quando escolher uma outra forma de vida.

Utopia? Fantasia? Alucinação? Esquizofrenia? Não sei.


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