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Quem somos
O pássaro
trinador de flores
conto iraniano reproduzido por Marie-Louise von Franz em A individuação
nos contos de fadas
Era uma vez um Rei que tinha três filhos:
Malik Mhuhammad, Malik Dschamschid e Malik Ibrahim. Ibrahim era o mais
moço e seu pai o amava, tal como o filho amava o pai. Tendo o Rei
adoecido, os médicos de todo o império não conseguiram
descobrir qual o remédio para sua doença. Mas aí um
certo doutor declarou que o remédio existia, desde que se conseguisse
encontrá-lo: pois havia no mar um peixe verde que trazia um anel
de ouro na mandíbula, e se alguém conseguisse pescá-lo,
abrindo-lhe a barriga e colocando um pedacinho do coração
de tal peixe sobre o coração do Sultão, este
certamente se restabeleceria.
Os três filhos ofereceram dinheiro a vários mergulhadores
e pescadores para que os mesmos procurassem o tal peixe, e afinal, após
alguns dias, estes conseguiram pescá-lo e o trouxeram a Malik Ibrahim.
Tomando-o nas mãos, o moço ficou tremendamente impressionado
com a grande beleza do peixe e, examinando-o, verificou que ele trazia
inscrito na testa: “Alá é o único Deus, Maomé
é seu profeta e Ali é seu sucessor”. Bem, é esse o
credo Shiita maometano. Ora, ao ler aquilo, Malik Ibrahim sentiu-se profundamente
comovido e exclamou: “Mesmo que meu pai possa ser curado por este peixe,
não posso matá-lo”, e lançou o peixe de volta ao mar.
Enquanto isso, todos aguardavam que ele trouxesse o peixe e, abrindo-lhe
a barriga, curasse o pai, até que descobriram que o rapaz devolvera
o peixe ao mar, o que os fez morder os dedos de espanto, sem conseguir
entender o fato. Quando disseram isso ao Rei, este ficou furioso e falou:
“Se na verdade Malik Ibrahim está esperando que eu morra para se
apoderar do trono, eu o deserdarei".
Daí em diante o Rei foi piorando cada vez mais, não tendo
mais paz nem de dia nem de noite; mais uma vez os médicos se reuniram
em torno de seu leito e declararam: “Ainda existe um remédio que
conhecemos, que é o Pássaro Trinador de Flores. Toda vez
que ele gorjeia, cai-lhe do bico uma linda flor e, se alguém conseguir
aprisioná-lo e colocar uma dessas flores sobre o coração
do Rei, ele ficará curado de sua enfermidade”.
O Rei beijou seus outros dois filhos, dizendo-lhes: “Agora, minha única
esperança é que vocês encontrem o Pássaro Trinador
de Flores”. Então os dois filhos montaram seus cavalos e partiram,
sendo seguidos por Ibrahim, pouco tempo depois. Os irmãos perguntaram
o que estava fazendo ele ali, ao que Ibrahim respondeu que também
ele ia em busca do pássaro, de modo que resolveram prosseguir juntos.
Chegando a uma encruzilhada onde havia uma árvore e uma fonte, desceram
dos cavalos para descansar um pouco. Tendo os seus irmãos adormecido,
Ibrahim foi dar um pequeno passeio, e de repente avistou uma tábula
de pedra onde estava escrito: “Aqueles que chegarem a esta encruzilhada
precisam saber que a estrada da direita não apresenta perigo e é
agradável, mas a da esquerda é cheia de perigos e nenhum
viajante que por ela seguir poderá ter esperança de voltar”.
Os dois irmãos, naturalmente, tomaram o caminho da direita, enquanto
a Ibrahim coube o da esquerda. Mas havia na tábula uma outra inscrição
que dizia que quem tomasse o caminho da esquerda deveria levá-la
consigo. E assim fez Ibrahim. Primeiramente, foi dar a um castelo cercado
de um lindo jardim onde encontrou uma bela jovem que o flertou; ele se
apaixonou por ela e esta já sabia o seu nome. De repente porém
Ibrahim se lembrou da tábula que trouxera consigo e, retirando-se
para um recanto do jardim, viu que nela estava escrito: “Se tomares o caminho
da esquerda, encontrarás belíssima e sedutora jovem, mas
não te deixes atrair por suas tramas pois ele é uma astuta
feiticeira que deseja matar-te. Ela vai te desafiar para uma luta e, quando
isso ocorrer, tens de arrancar-lhe a blusa e então verás
em seu ombro um sinal negro. Toma tua faca e enterra-a com toda força
nessa mancha negra, tratando porém de não errares o alvo,
pois se isso acontecer tu serás transformado em pedra negra”.
Aconteceu tudo como fora previsto e Ibrahim conseguiu mergulhar sua adaga
na mancha negra da feiticeira. Então surgiu um furacão, com
raios e trovões, tendo Ibrahim desmaiado de terror. Ao recobrar
os sentidos viu a seu lado o cadáver de uma terrível e decrépita
velha; quanto ao jardim e ao palácio, tudo desaparecera e ele se
achava num deserto.
Então Ibrahim prosseguiu caminho e logo se achou num jardim muito
semelhante ao primeiro; no centro havia um lago e nele vagava um barco.
Nadou até o barco e ali encontrou dez homens, dos quais apenas um
manifestava sinais de vida. Malik Ibrahim alimentou-o fazendo-o comer pedacinhos
de maçã, pois o homem estava demasiado fraco e faminto para
poder falar. Após se sentir mais reconfortado, o homem contou a
Ibrahim que o barco fora colhido por um redemoinho e que, diariamente,
ao meio-dia, surgia das profundezas uma grande mão que arrebatava
um deles para dentro do lago, quer estivesse vivo ou morto, e que antes
havia vinte homens a bordo, dos quais dez haviam sido agarrados e os demais
tinham morrido de fome. Ibrahim recorreu novamente à tábula,
na qual leu: “Se chegares a este barco, não te deixes distrair por
qualquer coisa que vejas, ou que aconteça, ou que a dona da mão
te relate. Essa mão que emerge do fundo das águas pertence
à irmã da primeira feiticeira. Tens que apertá-la
com toda a tua força, que é para romperes a maldição.
Caso sejas superado na luta, perderás para sempre tua liberdade”.
Aí surgiu da água uma linda mão enquanto uma voz o
saudava dizendo: “Apertemos as mãos, em sinal de amizade!” Ao que
Ibrahim respondeu: “Sim, com todo prazer”, e estendeu-lhe a mão;
reparando porém que a outra o ia puxando cada vez mais para a água,
ele se colocou sob a proteção de Deus e, com quantas forças
tinha, apertou tanto a tal mão, que a esmagou; novamente desabou
uma tempestade e ele viu a seu lado o cadáver da feiticeira, achando-se
perdido novamente no deserto.
Pôs-se então a caminho e foi dar a um lugar onde havia uma
árvore alta e uma fonte, com muitos macacos em torno da árvore.
Ele não sabia como explicar a presença de tantos macacos,
mas estes o cercavam, olhando-o com olhos tristes. Ibrahim recorreu à
tábula e leu: “Agora que mataste a feiticeira hás de chegar
a uma árvore cheia de macacos e a uma fonte. Segue o veio da água
e irás dar a um enorme edifício, onde encontrarás
uma jovem; mas também é feiticeira e tentará te cativar
e te iludir. Desta vez, terás que atirar-lhe à testa esta
tábula, para que lhe quebres a cabeça e rompas o encantamento”.
Tudo aconteceu como ali estava escrito e, logo que atirou a pedra à
cabeça da feiticeira, todos os macacos viraram lindas donzelas.
A líder das moças era uma Fada-princesa, que fora à
caça de uma gazela com suas damas. Mas a gazela que ela caçava
era a própria feiticeira e, mal as jovens entraram na floresta,
a gazela começou a correr em círculos transformando-se numa
mulher horrorosa e, no mesmo instante, transformou as jovens em macacos.
Agora que Ibrahim matara a bruxa-gazela, as moças estavam libertas
do encanto.
Ibrahim levou a Fada-princesa de volta à casa de seu pai e
pediu-a em casamento, porém o Rei confessou a Ibrahim que não
tinha só essa filha, Maiúne, que ele desencantara, mas também
um filho que tentara dar combate às feiticeiras e fora morto, achando-se
sepultado num cemitério próximo. Todas as noites, porém,
chegavam as feiticeiras e, como a bruxa de Endor, da qual fala a Bíblia,
retiravam da tumba o corpo do filho do Rei, ainda envolto nos restos da
sua mortalha; e a cada manhã o cadáver tinha que ser novamente
sepultado até que, na noite seguinte, tudo se repetisse.
Por isso Ibrahim se colocou, à noite, perto do túmulo e,
tendo sido outra vez instruído do que lhe competia fazer, tomou
uma lança e, quando duas feiticeiras apareceram para reiniciar suas
artimanhas, em um só golpe ele as degolou, tendo-se desencadeado,
no mesmo instante, uma terrível tempestade. Quando, porém,
tudo se acalmou, o Príncipe morto ressuscitou e declarou que, por
ter sido libertado por Ibrahim, fazia-se seu escravo para sempre.
Depois disso Malik Ibrahim se casou com a Fada-princesa, embora continuasse
determinado a partir em busca do Pássaro Trinador de Flores. Alguém
lhe disse que o pássaro se encontrava numa grande montanha rodeada
por milhares de demoniozinhos e que ninguém podia por ali passar.
Mas Ibrahim simplesmente se dirigiu aos mil demoniozinhos e, quando estes
o atacaram, destemidamente os fez estacar, o que os deixou curiosos por
saber o que é que aquele simpático e ingênuo rapaz
pretendia ali. Em lugar de o matarem imediatamente, deram-lhe a chance
de dizer porque viera. Ibrahim então confessou que desejava o Pássaro
Trinador de Flores. Abertamente contou-lhes toda a verdade e os demoniozinhos
então disseram que o pássaro se achava ali na montanha e
que pertencia a Tarfe Banu, filha do Rei; acrescentaram que eles não
lhe podiam trazer o pássaro e que Ibrahim teria que roubá-lo
sozinho; eles não se importariam. Chegaram mesmo a conduzir Ibrahim
ao castelo encantado, onde, num dos aposentos, encontrou Tarfe Banu adormecida
sobre um coxim todo ornamentado com pedras preciosas. Ela era tão
bela que não existe linguagem humana capaz de descrever-lhe a beleza.
À sua cabeceira se achava uma linda gaiola, dentro da qual estava
o Pássaro Trinador de Flores, e a cada trinada que este emitia caíam-lhe
do bico flores suavemente perfumadas. Ibrahim com grande rapidez se apoderou
da gaiola e fugiu, pedindo aos demoniozinhos que o levassem para casa.
Quando já se achava próximo do castelo onde morava, pendurou
a gaiola numa árvore e caiu no sono. Então, como se pode
imaginar, os irmãos apareceram e roubaram o pássaro, levando-o
para o Rei, a quem disseram terem sido eles mesmos que o haviam encontrado.
Mas o pássaro não cantava!
Ibrahim consegue chegar à corte e, ao vê-lo, o pássaro
logo se põe a cantar e as flores a lhe tombarem do bico, de modo
que o Rei logo fica curado. Eis, porém, que chega ali um exército.
Ao redor do palácio surge grande número de tendas e os irmãos,
horrorizados, descobrem que Tarfe Banu viera em busca de quem lhe roubara
o Pássaro. O ladrão, disse ela, teria que comparecer à
sua presença, pois não falaria com qualquer outra pessoa.
Todos empalideceram, mas Ibrahim se declarou disposto a ir. Vestiu-se principescamente
e compareceu diante da Princesa, que o recebeu muito afavelmente, declarando-lhe
ter feito um juramento de se casar com ele porque, a despeito da perseguição
das feiticeiras, conseguira encontrá-la, bem como ao pássaro,
e que por isso era ele o único que merecia se tornar seu esposo.
Ibrahim se casou, portanto, com Tarfe Banu, permitindo que mais tarde Maiúne
viesse se reunir a ele e todos viveram felizes até o fim de suas
vidas, como manda o destino.
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