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Mitos para adultos

Rosemary Sutcliff diz, na nota introdutória aos seus três livros sobre este ciclo, que o Rei Artur real deve ter sido um chefe guerreiro romano-bretão de algum momento da Idade Média. Especula-se que tenha vivido no século V, mas sua lenda contém elementos posteriores ao século XI. O conto aqui reproduzido veio de uma balada em inglês do século XV, e escolhi a versão que Heinrich Zimmer analisa em A conquista psicológica do mal.

 Sir Gawain e a Dama Abominável

Em companhia de alguns de seus jovens cavaleiros, entre eles sir Gawain, o rei Artur estava um dia caçando na floresta. Todos conheciam bem a região e não esperavam nenhum acontecimento miraculoso. No que o rei esporeou seu cavalo e se adiantou, distanciando-se deles um pouco, apareceu-lhe à frente, de súbito, um grande cervo. O rei o seguiu e, mal havia cavalgado meia milha, o abateu. Desmontou, atou o cavalo a uma árvore, sacou a faca de caça e começou a preparar a presa. Enquanto estava debruçado sobre ela, num pequeno trecho coberto de musgo, percebeu que estava sendo observado; ao erguer os olhos viu diante de si um cavaleiro bem armado, de aspecto ameaçador, "cheio de força e grande em poder".
"Sede bem-vindo, rei Artur!", disse o homenzarrão. "Afrontais-me há muitos anos, e por isso hei de vingar-me. Vossos dias de vida estão contados!". Assim ameaçado de morte imediata, o rei prontamente replicou, censurando, que pouca honra teria o cavaleiro com tal façanha. "Estais armado, e eu apenas vestido de verde, sem espada e sem lança". E indagou o nome de seu desafiante.
"Meu nome", disse o homem, "é Gromer Somer Joure". O nome nada significava para o rei.

O argumento do soberano, no entanto, tocara  num delicado ponto de honra cavalheiresca e o homenzarrão, protegido por sua armadura, viu-se forçado a ceder um pouco - não totalmente, mas um pouco. A condição imposta ao rei para permitir que se fosse constitui o tema e a trama deste grotesco romance. Sir Gromer Somer Joure exigiu que sua indefesa vítima jurasse voltar àquele mesmo local no mesmo dia do ano seguinte, desarmado como agora, vestindo apenas seu traje verde de caçador, porém trazendo, para resgatar a vida, a resposta a este enigma: "O que é que uma mulher mais deseja no mundo?"

O rei deu sua palavra e retornou, muito abatido, à companhia dos cavaleiros. Seu sobrinho, sir Gawain, notou-lhe a melancolia do rosto e, chamando-o à parte, indagou-lhe o que acontecera. O rei contou-lhe o segredo. Cavalgando ligeiramente afastados dos demais, ambos deliberaram, e finalmente Gawain deu uma excelente sugestão:
"Deixai que preparem vosso cavalo para uma viagem por terras estranhas e a quem quer que encontreis, seja homem ou mulher, perguntai o que pensam do enigma. Cavalgarei em outra direção, inquirindo todos os homens e mulheres, a ver o que consigo; anotarei todas as respostas num livro."

Só faltava um mês. O rei, inquieto, apesar da quantidade de respostas recolhidas, esporeou o cavalo e se aventurou na floresta de Inglewood, encontrando ali a bruxa mais feia já vista por olhos humanos: rosto vermelho, nariz destilando muco, grande boca, dentes amarelos pendendo-lhe sobre o lábio, pescoço comprido e grosso e pesados seios dependurados. Levava ás costas um alaúde e cavalgava um palafrém ricamente encilhado. Era uma visão inacreditável, a de tão horrenda criatura a cavalgar radiosa.

Vindo diretamente ter com o rei, saudou-o e avisou, sem rodeios, que nenhuma das respostas que ele e Gawain haviam obtido serviriam para nada. "Não vos ajude eu, e estareis morto", disse ela. "Concedei-me apenas uma coisa, senhor rei, e garantirei vossa vida; caso contrário, perdereis a cabeça". "Que quereis dizer, senhora?" - perguntou o monarca. "A que vos referis, dizendo que minha vida está em vossas mãos? Falai, e prometo-vos o que desejardes". "Pois bem", replicou a horrenda anciã, "assegurai-me que dar-me-eis em casamento um de vossos cavaleiros. Seu nome é sir Gawain. Proponho-vos um acordo: se vossa vida não for salva por minha resposta, meu desejo será vão; porém, se ela vos salvar, havereis de conceder-me ser a esposa de Gawain. Decidi agora, e depressa, porque assim tem que ser, ou estareis morto". "Santa Maria!" exclamou o rei. "Não concederei autorização a sir Gawain para desposar-vos. Tal coisa diz respeito somente a ele". "Bem", replicou ela, "retornai agora ao castelo e tentai persuadir sir Gawain. Apesar de feia, sou alegre". "Oh, Deus!", exclamou ele, "que desgraça se abate sobre mim!".

O rei Artur retornou ao castelo e seu sobrinho Gawain respondeu-lhe cortesmente: "Possa eu morrer em vosso lugar! Casar-me-ei com ela, ainda que seja um diabo tão feio como Belzebu - ou não serei vosso amigo". "Graças, Gawain", disse Artur, o rei, "de todos os cavaleiros que jamais encontrei, levais a palma".

Dona Ragnell era o nome da bruxa. Quando o rei Artur, voltando, fez-lhe a promessa, em seu nome e do sobrinho, ela respondeu: "Senhor, sabereis agora o que as mulheres desejam acima de tudo. Uma coisa habita-nos todas as fantasias, e a conhecereis: acima de qualquer coisa, desejamos ter soberania sobre o homem". Disse ainda ao rei que o gigantesco cavaleiro seria tomado pela ira ao ouvi-lo. "Maldirá aquela que vos ensinou, porque terá perdido seu trabalho".

O rei Artur galopou através de lama, pântano e charco para o encontro com sir Gromer Somer Joure; no momento em que chegou ao lugar combinado, deparou-se com o outro.
"Adiantai-vos senhor rei", disse-lhe o desafiante armado, "vejamos qual será vossa resposta". O rei Artur estendeu-lhe os dois livros, na esperança de que alguma das respostas obtidas fosse suficiente, libertando-o e ao seu sobrinho do indesejável compromisso. Sir Gromer percorreu as respostas uma a uma.
"Não, não, senhor rei", disse ele, "sois um homem morto".
"Esperai, sir Gromer. Ainda tenho uma resposta". O outro se deteve para escutar. "Acima de tudo o mais", disse o rei, "as mulheres desejam a soberania - é o que lhes apraz, e o seu maior desejo".
"E a ela, que tal vos contou, sir Artur, suplico a Deus que possa vê-la arder em uma fogueira. É minha irmã, dona Ragnell, aquela velha bruxa; cubra-a Deus de vergonha, pois se não fosse por ela, ter-vos-ia subjugado... Que tenhais um bom dia!" O peculiar cavaleiro há muito abrigava rancor contra o rei Artur, que outrora o despojara de suas terras, concedendo-as, "com grande injustiça", a sir Gawain. Perdera-se agora sua oportunidade de vingança e foi-se, enfurecido, pois jamais teria novamente a sorte de encontrar seu inimigo desarmado.

O rei Artur voltou a cavalo para a planície, logo encontrando dona Ragnell. "Senhor rei", disse ela, "sinto-me feliz porque tudo correu bem, como vos disse que ocorreria. Agora, desde que vos salvei a vida, Gawain deve desposar-me. É um completo e gentil cavaleiro; casar-me-ei publicamente, antes de permitir-vos separá-lo de mim . Cavalgai à frente; seguir-vos-ei até a corte, rei Artur".

Muita vergonha causava ela ao rei; mas ao chegarem à corte, e todos se indagarem atônitos de onde teria vindo tamanha monstruosidade, o cavaleiro Gawain adiantou-se sem qualquer sinal de relutância e virilmente honrou a promessa de desposá-la.

Todas as damas e cavaleiros da corte apiedavam-se de sir Gawain, aquelas chorando em suas câmaras, porque ele teria que se casar com uma criatura tão pavorosa e horrível. Tinha dois dentes como presas de javali, um de cada lado, de um palmo do comprimento, um apontando para cima e outro para baixo; a boca era enorme, cercada de horríveis cerdas. Tampouco se contentara com um casamento discreto e tranqüilo (tal fora o desejo da rainha), mas insistira em uma missa solene e num banquete no grande salão, a que todos comparecessem. Durante a festa mastigou três capões, outras tantas aves e vários pratos de assados, estraçalhando-os com as longas presas e as unhas até só restarem os ossos. Sir Kai, companheiro de Gawain, rapaz impetuoso e descortês, sacudiu a cabeça e disse: "Quem quer que beije essa dama, terá medo dos próprios beijos". E a noiva continuou a mastigar até a carne se acabar.

Nessa noite, no leito, a princípio sir Gawain não conseguiu se obrigar a voltar o rosto e encarar o focinho pouco apetitoso da noiva. Após algum tempo, no entanto, ela rogou: "Ah, sir Gawain, já que nos casamos, demonstrai-me vossa cortesia na cama. Por direito, isso não me pode ser negado. Se eu fosse bela, não vos comportaríeis assim; não fazeis a mínima conta dos laços matrimoniais. Em consideração a Artur, beijai-me, ao menos; peço que atendais ao meu pedido. Vamos, vejamos quão ardente podeis ser!"

O cavaleiro e leal sobrinho do rei reuniu cada pedacinho de coragem e gentileza. "Farei mais", disse, muito amável, "farei mais do que apenas beijar, por Deus!". E, ao se voltar, deparou com a mais formosa criatura que jamais vira.
Ela perguntou: "Qual é vosso desejo?"
"Oh, Jesus!", exclamou ele, "quem sois?"
"Senhor, sou vossa esposa, certamente, por que sois tão indelicado?"
"Oh, senhora, mereço que me censureis; eu não sabia. Sois bela a meus olhos - apesar de terdes sido a mais feia criatura que meus olhos já viram. Ter-vos assim, senhora, muito me agrada!". Tomou-a nos braços, beijou-a, e sentiram-se muito felizes.
"Senhor", avisou ela, "minha beleza não durará. Ter-me-eis assim, mas apenas durante metade do tempo. Esse é o problema: deveis escolher se me preferis bela à noite e horrenda durante o dia, diante dos olhos de todos, ou bela de dia e horrenda à noite".
"Oh, Deus, a escolha é difícil", replicou Gawain. "Ter-vos bela apenas à noite entristeceria meu coração, mas se decidir ter-vos bela durante o dia, dormirei em leito de espinhos. Quisera escolher o melhor, mas não faço idéia do que dizer. Querida senhora, que seja como desejais; deixo a escolha em vossas mãos. Meu corpo, meus bens, meu coração e tudo o mais são vossos para que deles façais o que quiserdes; juro-o diante de Deus".
"Ah, dou graças, cortês cavaleiro!", exclamou a dama. "Abençoado sejais, entre todos os cavaleiros do mundo! Agora estou livre de meu encantamento, e ter-me-eis bela e atraente tanto de dia como à noite".

Então ela contou a seu deleitado esposo como sua madrasta (que Deus tenha piedade de sua alma!) a encantara com suas artes de magia negra, condenando-a a permanecer sob aquela forma até que o melhor cavaleiro da Inglaterra a desposasse e lhe concedesse a soberania sobre seu corpo e seus bens. "Assim fui deformada", disse ela. "E vós, cortês sir Gawain, concedestes-me, sem condições, a soberania. Beijai-me agora, senhor cavaleiro, eu vos suplico; alegrai-vos e regozijai-vos". E desfrutaram deleitosamente um do outro.

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Perguntas

    Narciso
    Em O tarô mitológico, de Liz Greene e Juliet Sharman-Burke, Editora Siciliano:
   Narciso - na versão do poeta romano Ovídio filho do deus-rio Céfiso e de uma ninfa (Liríope) - era um jovem téspio que desde pequeno foi admirado por sua beleza, sendo adorado tanto por homens como por mulheres. A conselho do adivinho Tirésias sua mãe jamais lhe permitiu ver o próprio rosto, e assim Narciso não tinha noção de sua identidade.
    Certa vez, voltando de uma caçada pelos bosques, inclinou-se para beber num riacho de águas claras e puras, que jamais haviam sido tocadas por qualquer animal ou homem ou mesmo pelos galhos das árvores. Ao se debruçar para saciar a sede se apaixonou perdidamente pela imagem que viu refletida na água. Primeiro tentou abraçar e beijar o belo garoto que o olhava bem nos olhos. Depois, finalmente se reconheceu e ali permaneceu horas se contemplando.
    Por fim não conseguiu suportar mais a agonia daquele amor impossível: tomou de uma adaga e cravou-a no peito. Seu sangue jorrou na terra, e nesse lugar nasceu uma flor que se chamou narciso.
    Narciso não é um deus (é mortal). Sua mãe era uma ninfa, e as ninfas viviam apenas 9 000 e poucos anos.
    Em inglês Narcissus.

    Morgan Upright, na Encyclopedia Mythica, diz que Narciso é um dos vários exemplos de um jovem bonito que rejeita o sexo e em conseqüência morre. Seu mito tem muito em comum com o de Adonis e Hipólito. Muitas ninfas e moças se apaixonaram por ele, que rejeitou todas. Uma das versões do mito diz que a paixão de Narciso por seu reflexo foi vingança da deusa Nêmesis por seu desprezo pela ninfa Eco, outra conta que foi resultado das pragas rogadas, ao se suicidar, por um rapaz apaixonado.
    Do ponto de vista psicológico, é chamada narcisismo a concentração em si mesmo. Ver, por exemplo, Narcisismo, de Alexander Lowen. O ego humano se torna inflado e busca para si poder, prestígio e privilégios que não são seus por direito. Essa inflação faz o homem contemplar eternamente a si mesmo como um deus.

Autora desta página: Lígia Prado.

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